terça-feira, 18 de agosto de 2015

A caixinha de música do Filipe

A música é um elemento muito presente na minha relação com o Lipe, desde que ele estava na barriga. Eu sempre lia que era importante conversar com o bebê, mas confesso que achava estranho e, sempre que tentava, batia aquela sensação de estar falando sozinha. Em vez de me sentir culpada, busquei perceber quais eram as nossas formas de conexão, independentemente do que era esperado.

E aí percebi que era a música.

Eu sempre cantei muito para ele. A primeira música que cantei muito quando descobri que estava grávida era Debaixo D' Água, do Arnaldo Antunes, na versão belíssima da Maria Bethânia. Imaginá-lo na minha barriga se formando como um feto, sereno, confortável, amado, completo era algo que me enchia de ternura e me emocionava demais a cada vez que a música tocava. Bom, eu tenho uma história com essa canção há muitos anos. Ela fala à minha alma de quem vive no embate entre o salto no abismo e o que me é protegido. Mas tinha que respirar...todo dia! A música assim me ensinou, e eu fazia questão de frisar esse trecho a cada vez que cantava para o filhote.



Por falar em Arnaldo Antunes, ele foi um dos primeiros arrebatamentos do Lipe. Sim, com apenas uma semana de vida o pequenino já demonstrava o que gostava de ouvir. Um dos discos favoritos dele para a hora de mamar era Qualquer. Embalados pela voz rouca e pela poesia, lá íamos nós madrugada afora, com meu celular do lado fazendo as vezes de caixinha de música. Sempre lembrarei desse álbum com muito carinho. Para mim, ele é sinônimo da construção do nosso vínculo, nós dois ainda desajeitados e nos conhecendo.



No fim da gravidez, me lembro de cantar muito Beautiful Boy, do John Lennon. Essa música me toca por muitos motivos. O mais óbvio é a levada lullaby fofinha, mas essa é só a primeira camada. O que me encanta mesmo é a letra. Acho que, no fundo, eu sempre quis ter um filho só para cantar essa música para ele. Eu cantava para o Lipe e me emocionava por ele ter um pai super presente, que o enchia de amor ainda na barriga. Quando Lennon falava the monster's gone and your daddy is here, eu não conseguia segurar o choro. A música também fala da ansiedade pelo que vai acontecer - e ansiedade era do que eu mais entendia naquela reta final de gravidez.  I can hardly wait to see you come of age but I guess we both just have to be patient 'cause it's a long way to go...! A letra fala da ansiedade, mas dá o antídoto: but in the meantime. Aproveitar o "enquanto isso", o "enquanto ele não nasce", o agora. Afinal - e agora vem o trecho mais incrível e mais certeiro - life is what happens to you while you're busy making other plans! Até hoje canto essa música para o Lipe e ele adora!




Ainda na leva Beatles, gosto de cantar Golden Slumbers na hora de dormir. Golden slumbers fill your eyes/ smiles await you when you rise/ Sleep little darling, do not cry/ I'll sing a lullaby.  Ele vai fechando os olhinhos devagar até adormecer. Beatles versão lullabies, aliás, é trilha obrigatória aqui em casa. Apesar de eu amar a versão original dos Beatles, gosto muito da do Ben Folds, que está na trilha sonora maravilhosa de I am Sam.




Se vocês estão pensando que só tem Beatles e Arnaldo Antunes na setlist do Lipe, estão enganados. Aqui rola muita cantiga de roda. Minha mãe trouxe um disco do Brasil com as cantigas clássicas da nossa infância. A favorita do Lipe nas primeiras semanas foi A Barata. Ele só dormia com essa! João teve que sacar essa música do repertório no primeiro dia em que resolveu descer com Filipe até a cafeteria aqui do lado. Lipe abriu o berreiro...e só a música da barata salvou! Aqui vai a versão do Palavra Cantada, que recomendo fortemente a todos com filhos pequenos - e a todos sem filhos que gostem do universo lúdico, por que não? Essa turma é incrível e ponto.



Depois Lipe enjoou da música da barata e o esquema infalível aqui passou a ser O Galinho. Só que aí começaram a surgir as variações. Eu e João amamos inventar letras em cima das músicas que já existem. Em geral, nada muito criativo...coisas como "O Filipe é bonito", "ele é muito pequenino" e por aí vai. São frases-valise que sempre se encaixam em qualquer letra de criança. Mas às vezes nós nos superamos. Como nesta versão de O Galinho. É que, aqui nas Filipinas, briga de galo é legalizada. E é muito comum as pessoas terem galos para colocá-los para lutar. Além disso, preciso explicar que o traje típico daqui para homens chama-se barong. Daí que a música ficou assim:

Mr. Xun tem um galinho, lalá
Ele é pequenininho, lalá
Mr. Xun lalalá, o galinho, lalá
Galinho Mr.  Xun

Ele usa um baronguinho, lalá
Todo desalinhadinho, lalá
Mr. Xun, lalalá
O galinho, lalá
Galinho Mr. Xun

Ele luta num ringuinho, lalá
E é muito fracotinho, lalá
Mr. Xun, lalalá
O galinho, lalá
Galinho Mr. Xun

Pronto, já registramos nossa pérola para a posteridade. Dever cumprido :P





Filipe é um bebê eclético e as versões vão das cantigas de roda ao reggae de raiz brasileiro. Por isso na hora de trocar a fralda a trilha sonora é Árvore, do Edson Gomes, que ficou assim:

Vem me trocar, mãe!
Vem me trocar!
Vem me trocar, mãe!

Todo santo dia, pois todo dia é santo
E eu...sou um bebê boniiiiiiiiito!
Que precisa ter os seus cuidados

Vem me trocar, mãe!
Vem me trocar!
Vem me trocar, mãe!

P.s.: Essa música tem variações e às vezes é cantada no banho, sob a forma de "vem me banhar, pai!"





Quem me conhece sabe que, quando eu era bebê, eu era ninada pela minha babá (alô, Irene!) ao embalo de Galeguinho dos Zói Azul, do Genival Lacerda. Acho que isso diz muito sobre a minha personalidade, rs. Minha mãe diz que ficava impressionada.  "Como a menina consegue dormir com essa música agitada?", ela se perguntava. Pois é. Eu conseguia. E aí, sem nem perceber, lá está a pessoa aos 31 anos de idade cantando um forró-frevo para Filipe dormir. Pagode Russo, com o mestre Gonzagão!




Daí eu me empolgo e emendo um medley com vários outros frevos e clássicos dos meus carnavais: Voltei, Recife; Vassourinhas; o Hino do Elefante de Olinda; Frevo e Ciranda; Lia de Itamaracá; alguns cocos e maracatus. No auge do baticum é que percebo que são músicas agitadas e que talvez eu devesse estar cantando algo mais calmo. Aí o que eu faço? Em vez de mudar o repertório, mexo no andamento das músicas e canto o frevo assim calminho, baixinho e bem devagarinho até virar canção de ninar.


Para fechar, tem Senhor Cidadão, do Tom Zé, que sempre cantamos na hora de mamar. A letra é bem punk, mas a versão do Lipe ficou assim:

Ó, senhor bebezão!
Eu quero saber, eu quero saber
Com quantos litros de leite
Com quantos litros de leite
Se faz o meu biberão


Inventar músicas e cantar junto com o João para o nosso filho é, sem dúvidas, um dos meus momentos favoritos. São letras que podem não fazer sentido algum para quem está de fora, mas que nos divertem por trazerem vários caquinhos de coisas que vivemos e recolhemos aqui e ali. Por isso são tão especiais! Assim que o Lipe estiver maior, vamos convidá-lo a inventar letras, inventar histórias, inventar o mundo! E assim vamos, juntos, ampliando nossa caixinha de música.




quarta-feira, 25 de março de 2015

Filipe com "i" - o processo

Nota: este texto foi escrito em setembro, como parte do Diário da Saudade - cartas que eu escrevia para o João quando ele já estava nas Filipinas.



*Para ler ouvindo Você é Doida Demais, do Lindomar Castilho.






Amor meu,

Depois que você levantou a lebre de escrevermos o nome do nosso filhote com "i", não consegui mais me desligar disso. Toda a minha natureza obsessiva-compulsiva se manifestou com força total e eu não consegui tirar esse pensamento da cabeça. A cada momento do meu drama, eu me sentia uma personagem de um filme do Almodóvar ou então de um seriado desses bem doidos. Sério, amor. Eu sofri. Sofri simplesmente porque você me tirou da zona de conforto de algo que já estava decidido. Aí começou a via-crucis, um longo processo até eu me acostumar com a nova ideia.

A sensação era a de um cachorro correndo atrás do rabo. Passei esses dois dias escrevendo o nome do pequeno com "i" e com "e" para ver qual batia melhor. Escrevi nos bloquinhos, escrevi no computador, criei até um contato fictício na agenda do meu celular pra visualizar assim com mais realidade. Virei a doida dos nomes.

Pesquisei toda a História. Fui até a Macedônia e outros cantos que nem existem mais no mapa. Como você disse, a origem parece ser mesmo com "i". Até na Bíblia eu fui parar e lá estava: Filipe. Mas algo ainda me arranhava nessa grafia. Passei o dia incomodada, tentando compreender qual era a minha agonia. Por que algo tão banal estava me causando tanta angústia?

Eu escrevia no computador e ficava longos minutos olhando para o monitor. Já sei! É que a palavra pesa mais pra esquerda, sabe, um bloco visual concentrado num canto da palavra. Veja: Filipe. Tudo é vertical. Agora, com Felipe é diferente. Olha como é harmônico. Começa vertical, desce, depois sobre, depois desce. Duas letras "e" quase simétricas, meio que equilibrando a palavra. Fiz todo esse percurso de pensamento para me achar louca logo em seguida. Ainda bem que consigo rir de mim mesma. Palavra pesando mais para um lado? Chega de viagem alucinógena, Danyella, foca no fato histórico. Mas quem disse que eu conseguia?

Resolvi escrever à mão pra ver se passava. Percebi que eu ficava ligeiramente sem ar a cada vez que ia pingar o i. Eu devia estar chegando perto do foco do problema, pensei! Havia de fato algo que me arranhava. Me dei conta de que eu tenho raiva da letra i! Mas por quê?

A conclusão veio ligeira: Danyella com ipsilon e dois eles, essa entidade que vos escreve, passou a vida inteira tendo que soletrar o nome. E vendo meu nome ser escrito com i! A cada vez que alguém escrevia Dani, algo me irritava. Eu só não tinha me dado conta disso ainda. Mas o que me irritava mesmo era o y com pingo. Aí era de lascar. Do tipo: a pessoa escrevia com "i", eu corrigia e aí o remendo era puxar uma perna no "i". Ipsilon com pingo. Criava-se aí um novo alfabeto.

Percebi que minha angústia toda era medo do filhote ter que passar a vida explicando o nome. Dizendo que é Filipe com "i". Você está passando por isso agora, sendo um João com til nas Filipinas, terra onde não existe til. E, somente a partir dessa perspectiva, você sugeriu Filipe com "i". Engraçado, né? No fundo eu e você estamos com a mesma preocupação: a dele ser diferente. Eu, preocupada com a diferença aqui. Você, com a diferença no exterior. É...acho que, de um jeito ou de outro, ele vai ter que explicar.

Mais conformada, passei a tarde hoje acarinhando o seu Filipe com "i". E aí que o incômodo foi se dissipando, até que eu achei bonita a combinação com o seu sobrenome: Filipe Schittini. Assim, bem cheio de "is" e pingos e tudo.

Então podemos afirmar:


Habemus Filipe.


P.s.: agora, depois de todo esse redemoinho mental que tive a falta de vergonha de compartilhar com você, vou ali tomar meu gazpacho com soníferos.

Te amo!

Dany com ipsilon, a Louca.







sábado, 21 de março de 2015

7 de março de 2015 - o dia em que nascemos

Meu filho Filipe nasceu às 8h52 do dia 7 de março de 2015, em Manila, nas Filipinas, após 9 horas de trabalho de parto. Este é quase um lide jornalístico. O quê. Quando. Como. Onde. É que tento me organizar há exatas duas semanas para escrever sobre a experiência do parto e nenhuma palavra me parece exata. Nenhuma linguagem parece dar conta desta experiência que só consigo descrever como espiritual. Ou transcendental. Ou metafísica. Escrevo como quem tateia e percebo que "ou" não se encaixa nesta linguagem. Cabe, sim, dizer "e". Porque o parto é soma, é tudo ao mesmo tempo, são várias nascituras. A do bebê, a da mãe, a do pai, a de uma família.

Lipe tinha algumas datas estimadas para nascer. Pelos cálculos do Brasil, seria dia 5. Pelos cálculos aqui, seria entre dia 9 e dia 11. No dia 6 pela manhã, fui a uma consulta de rotina para monitorar como ele estava na barriga. A médica disse que ele ainda estava um pouco alto e que ainda havia muito líquido. Ou seja: ele aparentemente não tinha pressa para sair de lá. Marcamos a próxima consulta para o dia 11 e ela disse que poderíamos esperar até a 41ª semana sem problemas.

Saí um pouco frustrada e ansiosa porque, afinal, a próxima consulta era depois da última data prevista para o parto. Meu filho ainda demoraria para chegar. Esses últimos dias pareciam passar de forma mais vagarosa que a gravidez inteira.

Fui para casa e, durante a tarde, saí para comprar algumas coisas que ainda faltavam para o enxoval. O que me afligia era não achar uma loja de móveis legais por aqui para encomendar um nicho retangular para o quartinho dele, onde pudéssemos colocar os brinquedos. Coisa simples, que em Brasília eu conseguiria resolver num pulo, aqui se tornava um desafio - não ter referência de lojas, de marceneiros e também não ter carro para sair pesquisando por aí. Eu tinha que resolver tudo previamente pela internet e só sair de casa quando a escolha já fosse certeira. Isso me angustiava um pouco - "isso", na verdade", era apenas uma roupagem para a sensação de estar longe de tudo que me é confortável e seguro, percebo.

À noite saí para jantar com João. Voltamos para casa, fomos deitar e eu comecei a pensar na vida. Me lembrei do livro A maternidade e o encontro com a própria sombra, que me acompanhou durante a gravidez. Pensei em como a autora defende que nos comuniquemos de forma clara com o bebê sobre o que estamos sentindo.

O que eu sentia: ansiedade por ele não chegar logo nas datas previstas. Aí comecei a pensar na mensagem que eu poderia estar passando para o meu filho: a de que eu não estava pronta para a chegada dele, por estar tão focada nessas coisas exteriores que eu supostamente ainda precisava resolver (como a tal estante).

Parei para pensar, listei mentalmente todas as pendências e vi que nenhuma delas era essencial. Respirei fundo e falei isso para ele. Falei: "Lipe, a hora que você quiser vir, pode vir, porque sua mãe e seu pai estão prontos para te receber com todo o amor do mundo. Não tem nada faltando para você. Você tem tudo o que precisa. Sobretudo amor. Isso nunca vai te faltar!". Conversei com ele e fui adormecendo.

Cerca de meia hora depois, senti uma espécie de cólica bem chatinha. Nem desconfiei que pudesse ser contração. Na minha cabeça, contração era uma coisa (que eu ainda não sabia o que era, mas que certamente iria descobrir quanto sentisse) e cólica tipo de menstruação era outra. Fiquei quieta tentando dormir e fazer a dor passar. Foi piorando. Resolvi ir ao banheiro e vi que estava com um sangramento. Acordei o João e ligamos para a minha obstetra. Isso era cerca de 0h30. Ela atendeu e disse que podia não ser nada de grave, já que havíamos nos visto pela manhã e estava tudo bem, com nenhum sinal de que o bebê iria nascer. Ela me aconselhou a tentar ver se passava e esperar até de manhã cedo para ir até o consultório dela. Ou então ir até a emergência do hospital se eu quisesse ficar mais tranquila.

João optou por irmos de manhã - afinal, ele estava dormindo; a dor não estava assim de outro planeta; a própria médica havia sugerido isso. Okêi. Tentei deitar e voltar a dormir. A dor foi piorando. Eu respirava fundo, me contorcia, mas pensava: é normal, não há nada de errado, é só uma cólica. Vai passar. Não, não passava. Só piorava. A cada pontada eu me sentia sem ar. Quase não conseguia me mover. Aí passava, ficava cerca de 1 ou 2 minutos em trégua, e depois vinha com tudo. Tentei andar pelo quarto, tentei sentar na cadeira, tentei mil coisas.Até então eu estava sofrendo sozinha, pois tinha medo de incomodar todo mundo na casa e não ser nada de grave. Mas o negócio estava tão brabo que  resolvi acordar o João e dizer que estava doendo MUITO.

Ele, ainda meio zonzo, falou um "vamos pro hospital agora". Lá fomos nós. Acordei minha mãe, disse a ela que "ia ali rapidinho na emergência ver o que era, mas que não devia ser nada" e que, qualquer coisa, ligava pra ela. Pegamos um taxi no meio da madrugada rumo ao Makati Med.

Chegando lá, não lembro mais de muita coisa. Sei que me colocaram numa cadeira de rodas, seguimos para o delivery room, as cólicas aumentavam de intensidade, me mandaram tirar meu colar da sorte, me levaram para uma sala de exames e tcharã: eu já estava com 3 cm de dilatação e as tais cólicas eram, sim, as famosas contrações. Em outras palavras: eu havia entrado em trabalho de parto.

João ficou preenchendo formulários enquanto as enfermeiras monitoravam as contrações e a dilatação. De repente, minha percepção espaço-temporal ficou totalmente alterada. Não sei mais em que momento me levaram para a sala de parto. Sei que me sentaram numa maca e disseram que o anestesista já havia chegado e que eu iria tomar a peridural. Neste momento, as contrações estavam  muito fortes e eu achava que não ia aguentar. Eu me sentia uma figura barroca, toda contorcida. Eis que chega o anestesista e, sem dizer uma palavra, começou a preparar umas injeçõezinhas para colocar no meu braço. Eu: "peraí, o que é isso que vão me dar? Eu quero saber!" e ele me deixou no vácuo. Sério. Me ignorou completamente. Mas o negócio doía tanto que eu baixei a guarda. A orientação era que eu não fizesse nenhum movimento brusco durante a anestesia. O que é obviamente muito difícil, porque, diante de uma contração, a natureza te leva a se contorcer para segurar a dor. Acho que este foi o momento mais tenso para mim. Administrar a dor e ter o sangue frio para não me mexer nenhum milímetro.

Depois que a anestesia começa a fazer efeito, é tudo lindo. Comecei a entrar num êxtase metafísico. Senti a presença das minhas avós já desencarnadas ao meu lado. Me senti conectada com todas as mulheres do mundo que já pariram antes de mim. Senti que a Moema e a Cristina estavam ao meu lado segurando a minha mão - essas duas com quem divido os caminhos do humano e do profundo. Senti muitas coisas. Mas nada cabe em palavras. Nada que eu escrever aqui vai dar conta da transformação profunda que se passou comigo naquelas horas enquanto a dilatação aumentava.

Quando a dilatação passou de 8, me lembro da minha obstetra dizendo que estava chegando a hora do "push", ou expulsivo, como dizem no Brasil. Ela e a equipe de auxiliares me ensinaram como fazer a força para empurrar o bebê, seguindo a contagem que elas fariam. Praticamos algumas vezes. De repente, era para valer. Enquanto elas contavam até dez, eu fazia força para empurrar meu filho. Uma vez. Duas. Várias vezes. Nas últimas, as enfermeiras fizeram uma pressão na minha barriga. Mais uma contagem. Ela tirou o Lipe e começaram a fazer massagem nele, a aspirar o nariz, até que ele chorou. Esse hiato deve ter durado coisa de um minuto. Mas, para mim, pareceu uma eternidade. Eu não entendia o que estava acontecendo com meu filho. Se ele estava bem. Se não estava. Eu só via que ele estava roxo e em silêncio, sendo massageado por ao menos 5 pessoas. Na minha cabeça, passou a ideia de que ele estava morrendo.

Perguntei, com a voz em fiapo: " is he ok?"

A médica disse que sim.

Ele não estava morrendo. Ele estava nascendo. E nascer tem um tanto de morte, como morrer é também nascer. Pensei na música do Arnaldo Antunes que nos acompanhou na gravidez e falei pra ele, em silêncio: "mas tinha que respirar, Lipe! Todo dia!".

Ele chorou e veio para o meu colo. No vídeo que minha mãe fez, escuto minha voz dizendo: "Você é a cara do seu pai!" e "Deus te abençoe, meu filho!". João me fazia carinho o tempo todo. Não lembro de ouvir a voz dele. Mas me lembro do quanto aquele silêncio tinha força. Vendo o vídeo, percebo que ele estava paralisado, quase que sem reação. Só ele pode dizer o que se passou pela cabeça dele durante o nascimento do Filipe. Mas tenho certeza de que foi algo forte e igualmente transformador. Um pai também nascia, ali.

Dar à luz meu filho foi uma experiência tão forte que eu me sentia, de fato, um corpo só junto com ele. Sentia as sensações dele.

A médica me perguntou se eu queria que ele fosse para a enfermaria enquanto eu iria para o quarto descansar. De pronto respondi que não, que eu queria meu bebê junto comigo o tempo todo, mesmo cansada. Ficamos abraçadinhos até que vieram nos levar para o quarto. Acho que tentei amamentar. Exaustos, dormimos. Não me lembro mais o que se passou até o dia seguinte. Só sei que nasci junto com ele no dia 7 de março de 2015. Meu pequeno valente, que já desbrava a alteridade do mundo. Meu anjinho, que me mostrou a força da nossa comunicação ao iniciar o trabalho de parto horas depois de eu dizer a ele: estou pronta.

Estamos prontos, Lipe, para aprendermos juntos a cada dia.

Respiremos!

Amo você, infinito e além! Bem-vindo a este planeta que tanto precisa de doçura.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Perto do coração - Cartas para Clarice

Querida Clarice,

A hora mais triste do dia, para você, continua sendo 3 da tarde? Para mim, é difícil estabelecer. Todas as horas são um pouco tristes e um pouco felizes. Meu filho chega em algumas semanas. Meu primeiro filho. O que significa esta palavra "filho", Clarice? Eu só vislumbro. Ainda me sinto no meio do caminho desta trilha que é virar mãe. Será que a gente aprende? Eu tenho tanto a aprender. No fundo, acho que aprendo ouvindo a minha solidão. Mas nenhum homem é uma ilha, não é? Nem mesmo quando cercado de sete mil ilhas.

É que, aqui, tenho de aprender a ser outra. A ser, talvez, mais sóbria, mais apolínea. Há faces que já não me cabem. Não por eu não querer, mas por não haver espaço. Não encontro espaço, por exemplo, para o meu bloco de carnaval. Aquele que não liga se não é fevereiro. Que pinta os olhos de rosa e amarelo, coloca flor de retalho nos cabelos, lantejoulas, meia arrastão, cílios postiços. Uma boneca-fulô-drag-brincante. Eu era isso também, Clarice. Também. Dentro daquele turbante dos filhos de Gandhy. Neste apartamento (apartamento vem de apartar?), cavo o espaço para o meu turbante, minhas contas e mistérios. Finco as unhas nos tacos. Tudo isto que me é sagrado, para onde tem ido?

Leio suas cartas a Sabino e fiquei com vontade de me meter na conversa. Há tantos ecos que vocês mal sabem, e sou infinitamente grata por me deixarem entrar. No íntimo, também sou frágil, incerta, descontrolada. Fernando te disse algo tão bonito. Vou procurando os grifos. "A gente podia ser assim, Clarice, viver apenas, aceitar o momento como essencial e nascer de novo entre dois cigarros, entre o brinquedo e o edifício, entre a palavra e a curva."

Quem ler estas linhas corre o risco de pensar que ando triste por aqui. Não é que eu ande. É que estou trocando de pele a fórceps. Tudo me transforma. Sobretudo a falta tem me transformado, este aprender a ser de uma nova maneira, a compreender novos códigos. O tal relativismo.

Mas veja: eu estou absolutamente preenchida de uma nova vida. Então soa um paradoxo falar em falta, não é? Mas o que somos senão grandes paradoxos perambulantes por aí, cheios de alegria e dor? Vida e morte. Certa vez, tive uma epifania e me veio claro que tudo, absolutamente tudo, se resume a esta dupla, este par de opostos complementares. Todo o resto se constrói a partir.

Conte, Clarice, como anda a sua relação com Frau Hulda? Você parece gostar de quando ela esbarra na sua solidão e força um contato com o mundo real. O que teremos para o almoço? Você é tão fina, Clarice, que consegue pedir a Frau Hulda um almoço impecável. Eu não consigo. Não fui versada no Correio Feminino, embora nutra por ele genuíno interesse. Você tem um cardápio para a semana, Clarice? Adoraria poder compartilhá-lo. Acho que passaremos várias tardes juntas. Quem sabe um chá com Frau Hulda?

Nos seus intervalos de costurar para dentro, me escreva. Talvez quando sua missiva chegar, eu já esteja  entre fraldas e cuidados que agora desconheço. Não haverá problema. Eu encontrarei um instante suspenso para ler você. Mande lembranças a Fernando, que sempre me diverte.

Meu carinho,

Dany

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Conscious birth - ou da importância dos afetos na gestação

Eu e João participamos hoje de um seminário aqui em Manila chamado Conscious Birth, conduzido pela doula russa Irina Otmakhova. O grupo era bem pequeno e pudemos aprender sobre as possibilidades de um parto humanizado - seja em casa, seja no hospital. A maioria das informações não era bem novidade, afinal a internet e os livros estão aí para aplacar a nossa avidez. O que mais me valeu, nessa experiência, foi a possibilidade do encontro. 

Desde que cheguei aqui, tive contato com apenas uma grávida. Estar num círculo com outros casais que vivem a mesma jornada que você é mesmo da maior importância. Ao menos me foi. O fim do seminário foi super interessante, aliás. Porque a Irina começa a conversa pedindo para escrevemos num papelzinho quais noções sobre parto nós carregamos - heranças da sociedade, coisas que nos ensinaram e que crescemos tomando como verdades.  Daí no fim do encontro, à luz das novas informações, ela pede para escrevermos o que gostaríamos que tivessem nos dito antes.

Cada mulher, então, vai para o centro de um pequeno círculo formado por pétalas de rosas. Em volta desse círculo, os outros participantes formam uma roda maior. O papelzinho com as frases que esta mulher escreveu vai passando e cada um lê para ela uma das afirmações.

Pode parecer uma coisa boba, mas o poder desta simples atividade é impressionante. Porque são outras mulheres te dizendo coisas como "por mais que doa, você dá conta", "o nascimento é sagrado e deve ser cheio de amor", "este é um novo começo" etc. Como eu disse, são coisas que a gente já sabe. Mas o poder do símbolo, deste círculo de mulheres, foi o que mais me impressionou. O gesto. 



Eu, João e Lipe bem ali no canto direito. A doula é a de colar, no centro


Irina leu para nós um texto atribuído a uma poetisa africana chamada Tolba Phanem, em que ela fala sobre como uma certa tribo na África encara a concepção, gravidez e a vida deste novo ser gerado. O texto é longo e está disponível em vários sites internet afora. Vou resumir aqui a ideia:

Nesta tribo, a idade de uma criança não começa a ser contada a partir da data do seu nascimento, mas a partir do primeiro momento em que a mãe desejou ter o filho. Enquanto ideia, enquanto presença, ele já nasceu e já habita a alma da mãe. Conectada com esta presença, com este desejo, ela vai para debaixo de uma árvore e escuta qual é a canção daquela criança. Ela volta para casa, canta esta canção com seu companheiro, e aí eles estão prontos para a concepção. A música é repetida várias vezes na gravidez, por diversas pessoas da tribo que formam uma espécie de rede em torno da mulher  e seu filho. Quando ele nasce, já tem sua música. E essa música segue sendo a identidade daquele ser. Quando ele se esquece de seus valores, quando se sente menor ou inútil, as pessoas cantam sua música como forma de lembrá-lo de quem ele é. O mesmo vale quando ele fere as regras da tribo. Em vez da punição, as pessoas cantam sua música e o transformam pelo afeto e pela reconexão consigo.

Achei essa história tão linda, mas tão linda, que deixei de lado minha faceta controladora (a que perguntaria "mas que tribo é essa? ninguém nunca diz, então é porque não existe") e simplesmente me liguei com o que existe de mais simples nela. Como uma história de "era uma vez". Sem tempo, sem lugar. Isso não importa. O que importa é compreender a força que as redes de afeto têm na construção e fortalecimento da nossa identidade.

De repente, foi como se eu me sentisse ligada a todas as mulheres que passaram pela minha vida. Minha mãe, minha avó, minha tia...tantos umbigos antes do meu, como escreveu uma vez a Liziane Guazina, poeta radicada em Brasília e que também espera seu primeiro bebê. Fiquei pensando que tão importante quanto o ritual do chá de bebê, em que ganhamos coisas para o enxoval, seria um ritual em que as nossas mulheres próximas - gerações mais velhas, gerações mais novas - pudessem apenas estar ali e nos abraçar. Nos presentear com objetos que fossem um amuleto de sorte, um amuleto de boa jornada rumo ao desconhecido, um amuleto que conectasse os umbigos e nos tornasse todas uma. Eu colocaria todos esses amuletos juntos numa caixinha e teria um retrato de mim, porque eu sou o amor e a coragem de todas essas mulheres.

Assim talvez seguiríamos mais fortalecidas e com menos medo.

Saí deste pequeno seminário de duas horas com a sensação de estar mais conectada com o que interessa e menos com coisas externas, como as coisas que ainda preciso comprar, o berço que não chegou, o modelo de canguru que não consigo escolher...

Porque, no fundo, nosso bebê precisa mesmo é do nosso amor e do nosso colo. Que a gente cante sempre a sua música. Isso, Lipe, nunca há de faltar!







domingo, 25 de janeiro de 2015

A vida em Manila #4 - Diários de uma grávida

Estar grávida é uma experiência única. A frase é o maior clichê do universo, mas é totalmente verdadeira. O corpo muda, o humor muda, as necessidades mudam. Às vezes, tudo o que precisamos são coisas que dêem conforto emocional. Portanto, posso dizer que estar grávida longe de casa, do outro lado do mundo, torna o processo ainda mais sui generis.

Passei metade da gestação no Brasil e metade aqui nas Filipinas. Agora, quase na reta final (já se vão 33 semanas!), posso compartilhar com vocês as principais diferenças que tenho notado.

1) Aqui, as grávidas são intocáveis - mas nem tanto

Explico: desde que cheguei, qualquer atividade diferente precisou ser devidamente negociada. De uma simples massagem no pé até a prática de esportes. No Brasil, é muito comum encontrar massagens para gestantes, que costumam misturar manobras de drenagem linfática com técnicas de relaxamento. A drenagem (feita por especialistas em gestantes) é inclusive recomendada pelos obstetras, já que nós grávidas sofremos muito com retenção de líquido.

Já aqui nas Filipinas, drenagem linfática para grávidas parece uma heresia. Fora de cogitação. Nos vários estúdios de massagem espalhados por Makati, onde moro, só me aceitaram para fazer uma levíssima massagem nos pés.  Eles alegam que a massagem pode ativar pontos de reflexologia perigosos na gravidez. A real, na minha humilde opinião, é que ninguém quer arriscar que você tenha algum problema e depois diga que foi por causa da massagem.

Outro ritual em que fui barrada por estar grávida foi a depilação. Terror e pânico! Como assim, ficar sem depilar??? Eu venho do Brasil, terra que inclusive dá nome às técnicas utilizadas mundo afora, minha gente! Diante da minha perplexidade, eles justificaram que a cera pode fazer mal ao bebê. Okêi.

Todo esse cenário leva a crer que aqui o esquema é mais prudente e cuidadoso com as grávidas, certo? Não necessariamente. Aí entra um paradoxo que até hoje não entendo bem.

Na hora das situações desgastantes do dia-a-dia (pegar metrô lotado, enfrentar fila de taxi, fila de banheiro, fila de banco etc), as grávidas entram no vale-tudo junto com todos os outros mortais. Esqueça conceitos como fila preferencial e gentileza. A vida é dura para todos. Embora haja plaquinhas de fila preferencial nos lugares, as grávidas raramente estão representadas nela. Há menções apenas a idosos e portadores de necessidades especiais.

João pondera que é porque na Ásia tem muita gente e há um certo espírito de sobrevivência, do tipo "farinha pouca, meu pirão primeiro". Bom, eu até entendo, mas continuo achando estranho. Fila do banheiro enorme, você apertada-quase-morrendo-com-a-bexiga-do-tamanho-de-uma-ervilha, e ninguém dá a vez. Ninguém nem olha pra você, na real. Você fica lá em vigésimo lugar da fila e espera, espera, espera.

Sobre banheiros, ainda tem um detalhe cruel: aqui, as filas se formam atrás de cada cabine, em vez de uma fila "geral" para entrar nas cabines que forem desocupando, como costuma acontecer no Brasil. Então várias vezes eu fiquei lá, em pé, esperando minha vez e puf, uma pessoa passa na frente na maior cara de pau. Demorei a entender. É que eu não estava "em frente" à cabine que desocupou. Não parece muito justo, né?

Depois de enfrentar filas gigantescas, de ficar em pé porque ninguém cede lugar e de ainda ficar sem massagem, o que aprendi é: para manter a sanidade, é preciso deixar de mimimi e aceitar que a lógica é simplesmente outra. Não importa seu cansaço, desconforto, enjôo ou qualquer outra coisa. Você é só mais uma na multidão, onde cada um circula com suas dores e delícias.

2) Mostrar a barriga pode ser estranho e inconveniente

Na reta final da gravidez, a barriga começa a pesar bastante. Ainda mais neste calor brabo de Manila. Tudo incomoda. Certa vez, estávamos andando no Rizal Park (mal comparando, seria algo próximo do nosso Parque da Cidade) e eu levantei a blusa, que estava apertando. Todo mundo me olhou como se eu estivesse fazendo a coisa mais estranha e absurda do universo. Captei o estranhamento e desisti de fazer a Leila Diniz por mais tempo.

Um dia, no estúdio de massagem, também deixei a barriga de fora enquanto tentava me conectar com o cosmos. A massagista mandou um "ma'am, you're too sexy!". Demorei alguns segundos para entender se era uma cantada, mas acho que foi uma forma simpática de me mandar tampar a barriga. Assim o fiz e a moça não falou mais nada.

Por via das dúvidas, melhor mostrar a barriga apenas na praia ou na piscina do prédio.

3) Ma'am é diferente de mom

Ma'am é uma abreviação para madam, bastante usada em inglês. Se você for mulher, todos os vendedores vão te chamar de ma'am. O problema é que só fui descobrir isso de forma traumática.

Nas minhas primeiras semanas aqui, a barriga deu uma crescida brusca e todas as minhas roupas começaram a apertar. Precisei comprar vestidos de grávida e aquelas calças com elástico, tudo meio na emergência. Daí fomos ao Landmark, que é uma loja popular num shopping aqui perto de casa, onde você encontra de tudo.

Na seção de "maternidade", fui metralhada por umas cinco vendedoras de uma só vez, todas me chamando de ma'am e me dando peças para experimentar. Logo eu, uma inadaptada convicta, que odeio vendedores me abordando em lojas! Aquilo me deu muito desespero. Meu humor foi desaparecendo até que, num momento de fúria Scooby-Loo, eu virei pro João:

- Que droga!!! Será que dá para essas vendedoras pararem de forçar amizade e me chamar de "mamãezinha"??? Só porque eu estou comprando coisa de grávida? Não precisa disso! Odeio esse povo que chama grávida de "mãezinha"!

João apenas me olhou, caiu na risada, e me explicou que elas estavam me chamando de madame. Senhora. Coisa fina.  Até hoje, de vez em quando, ele pega no meu pé com essa minha primeira gafe, dizendo que a cidade inteira me chama de mamãe. Tipo da coisa que será sempre usada contra mim. Já aceitei para a vida.

Resumo da história: 

Tenho a sorte de morar num lugar ótimo, onde não preciso de carro e posso fazer quase tudo caminhando. Encontrei uma obstetra maravilhosa, com muita experiência com expatriados. O hospital onde será o parto é aqui pertinho. Está tudo ótimo comigo e com o Lipe e ele deve chegar na primeira semana de março.

Ainda assim, tem dias em que esses pequenos ruídos chateiam e tudo o que eu queria era fechar os olhos e me teletransportar para o Brasil. Mas aí penso que seria uma fuga. As diferenças culturais estão aí para nos engrandecer, das grandes às pequenas coisas.

O importante é ter paciência para passar por elas com graça e leveza!


Scooby-Loo, meu alter-ego, pronto pra briga! :P
















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