terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Perto do coração - Cartas para Clarice

Querida Clarice,

A hora mais triste do dia, para você, continua sendo 3 da tarde? Para mim, é difícil estabelecer. Todas as horas são um pouco tristes e um pouco felizes. Meu filho chega em algumas semanas. Meu primeiro filho. O que significa esta palavra "filho", Clarice? Eu só vislumbro. Ainda me sinto no meio do caminho desta trilha que é virar mãe. Será que a gente aprende? Eu tenho tanto a aprender. No fundo, acho que aprendo ouvindo a minha solidão. Mas nenhum homem é uma ilha, não é? Nem mesmo quando cercado de sete mil ilhas.

É que, aqui, tenho de aprender a ser outra. A ser, talvez, mais sóbria, mais apolínea. Há faces que já não me cabem. Não por eu não querer, mas por não haver espaço. Não encontro espaço, por exemplo, para o meu bloco de carnaval. Aquele que não liga se não é fevereiro. Que pinta os olhos de rosa e amarelo, coloca flor de retalho nos cabelos, lantejoulas, meia arrastão, cílios postiços. Uma boneca-fulô-drag-brincante. Eu era isso também, Clarice. Também. Dentro daquele turbante dos filhos de Gandhy. Neste apartamento (apartamento vem de apartar?), cavo o espaço para o meu turbante, minhas contas e mistérios. Finco as unhas nos tacos. Tudo isto que me é sagrado, para onde tem ido?

Leio suas cartas a Sabino e fiquei com vontade de me meter na conversa. Há tantos ecos que vocês mal sabem, e sou infinitamente grata por me deixarem entrar. No íntimo, também sou frágil, incerta, descontrolada. Fernando te disse algo tão bonito. Vou procurando os grifos. "A gente podia ser assim, Clarice, viver apenas, aceitar o momento como essencial e nascer de novo entre dois cigarros, entre o brinquedo e o edifício, entre a palavra e a curva."

Quem ler estas linhas corre o risco de pensar que ando triste por aqui. Não é que eu ande. É que estou trocando de pele a fórceps. Tudo me transforma. Sobretudo a falta tem me transformado, este aprender a ser de uma nova maneira, a compreender novos códigos. O tal relativismo.

Mas veja: eu estou absolutamente preenchida de uma nova vida. Então soa um paradoxo falar em falta, não é? Mas o que somos senão grandes paradoxos perambulantes por aí, cheios de alegria e dor? Vida e morte. Certa vez, tive uma epifania e me veio claro que tudo, absolutamente tudo, se resume a esta dupla, este par de opostos complementares. Todo o resto se constrói a partir.

Conte, Clarice, como anda a sua relação com Frau Hulda? Você parece gostar de quando ela esbarra na sua solidão e força um contato com o mundo real. O que teremos para o almoço? Você é tão fina, Clarice, que consegue pedir a Frau Hulda um almoço impecável. Eu não consigo. Não fui versada no Correio Feminino, embora nutra por ele genuíno interesse. Você tem um cardápio para a semana, Clarice? Adoraria poder compartilhá-lo. Acho que passaremos várias tardes juntas. Quem sabe um chá com Frau Hulda?

Nos seus intervalos de costurar para dentro, me escreva. Talvez quando sua missiva chegar, eu já esteja  entre fraldas e cuidados que agora desconheço. Não haverá problema. Eu encontrarei um instante suspenso para ler você. Mande lembranças a Fernando, que sempre me diverte.

Meu carinho,

Dany

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