quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Amor, oratórios, passarinhos e pequenezas

Vez por outra, tenho vontade de sumir por esse Goiás Velho de meus Deus, só para ouvir histórias. Queria mesmo era passar pela estrada de terra até chegar em Canápolis, chupar cana sentada na porta da casa que nem existe mais, olhando o tempo passar. Sertão é dentro da gente, já disse Guimarães Rosa. No domingo passado, fui ver um show de viola caipira e chorei. Era como se aquele som nunca me estivesse ausente. Acho que nasci ouvindo o pontilhar de cantadores, aqueles que percorriam as ruas lançando desafios. A mesma viola que meu avô, seu Emiliano Neves, ouvia na vitrola velha. Chorei porque senti que ele está comigo. Como Macabéa ao ouvir una furtiva lacrima na Rádio Relógio. Como se ali eu tivesse descoberto o princípio do (meu) mundo. De repente, o mundo me fez sentido. Era isso: aquele som nunca havia me deixado.

Refiz o filme da minha infância ali, na platéia do Teatro da Caixa. Quando pequena, eu não entendia por que a minha avó comia com as mãos. Ora, se já existia colher! Também não entendia por que meu avô passava as tardes sentado na velha cadeira em frente à porta. A cadeira dele, olhos firmes, como que a não perder de vistas ninguém que entrasse na casa. Não via graça naquele amontoado de primos e tios de cócoras no degrau, em torno da cadeira de meu avô, simplesmente a espiar o tempo e contar causos. Eu achava feio o teto de madeira e tijolos expostos, empoeirados. Não via sentido em chegar e ter de beijar a mão de todos os mais velhos, a bença, minha avó! Deus que nos dê boa sorte.

Foi preciso que seu Emiliano e dona Rachel fossem embora para eu perceber o presente que são todas essas coisas. Os sons. Terra e bois. É que, na casa deles, palavra falada era economia. Nunca tive a oportunidade de conversar sobre isso, esse sentimento de amor atávico que hoje choro quando escuto seis violeiros construírem retratos de minha família.


Hoje agradeço por ter tomado banho de rio em Porto Novo, vindo a ser água, eu e o Velho Chico. Por ter comido umbu e tido piriri no ônibus a caminho de Santana dos Brejos. Por ter visto a roda gigante dos ciganos em Posse, cidade entre Bahia e Goiás no meu mapa de lembranças. Agradeço pelas imagens daquele bando que trouxe o parque mágico, pelo medo de ser levada embora e pelas invencionices. Por ter comprado bala fiado na venda, cruzadinha em papel amarelado, banana embrulhada em jornal. Pela igreja branca no meio da praça. Foi lá que aprendi a rezar o Pai Nosso e errei o Creio em Deus Pai, quando todos os primos já sabiam. Obrigada por eu ter me feito de oratórios, passarinhos e pequenezas. Por ser a filha de Maria de Sinhá, amém.

* Texto escrito depois de um show do encontro Viola Instrumental Brasileira, realizado em 18 e 19 de março, no Teatro da Caixa. Participaram Toninho da Viola, Manoel de Oliveira, Paulo Freire, Roberto Corrêa, Cacai Nunes e Andrea Carneiro.


valsa verde

Dançávamos de mãos dadas diante de crianças, todos os olhares atentos para o pulo que parecia um pato, dezenas de meninos nos imitavam por toda a rua, com as luzes dos postes projetando milhares de patos no chão. Andamos até a escada, quando você parou e me deu passagem. Continuei andando; valsava agora com as luzes e com o que sobrara de você. Eu girava e meninos brincavam embaixo da minha saia, cada um pendurado em um carrossel de tecido. Viramos uma sombrinha perdida a nos proteger de chuvas. Um guarda-chuva verde, esquecido, na rua de patos.

Textos antigos

Amigos, enquanto eu não consigo trazer os textos do blog antigo para cá, deixo o link para quem se interessar:

www.poemalunar.blogdrive.com

Vou tentar criar uma espécie de arquivo aqui, para facilitar. Por enquanto, vamos no pinga-pinga!

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

E a velha pastora sai de cena...




Qual pedaço da minha alma se chama Mel? Com qual Danyella a Mel me fazia entrar em contato? Que Danyella se despediu de mim junto com a velha pastora, a velha poodle que dividiu 10 anos comigo? Como recuperar o pedaço de mim que se foi? São tantas perguntas, porque tudo agora é busca, tudo é desejo de ser água e dissolver o que sinto na infinitude do mundo. É que, perto de muita água, tudo é mesmo feliz. E eu, agora, sou essa ausência irreparável.

Aprendi, por todos esses anos, a respeitar tua presença, silenciosa, de alcance silencioso pela casa inteira. Mel chegou quando eu tinha 13 anos. Veio como um presente dos céus, um sinal cósmico de que nós precisávamos nos encontrar no mundo. Um belo dia, minha mãe recebeu uma carta endereçada à casa errada. Quando foi devolver o envelope, se deparou com uma pequena poodle abricot, toda serelepe, que veio fazer festinha no portão. Foi amor à primeira vista.

Durante dias, minha mãe só falava da cachorrinha, de como havia se encantado por ela e de como pareceu recíproco. Cerca de uma semana depois, a Ester, então dona da Mel, tocou nossa campainha. De Mel e cuia. Disse que precisaria se desfazer dos cachorros e que seu marido queria dar a Mel, única filhote que restara da Julie, para um amigo do casal. Só que o coração dela mandava dar a cachorrinha para a minha mãe, não sabia bem o porquê.

Aceitamos de pronto e, a partir desse dia, nossa felicidade encheu a casa inteira. Eu estava no computador, conversando ("teclando") com a Gabi num ICQ da vida. Minha mãe abriu a porta do meu quarto e a Mel entrou, logo vasculhando tudo em volta e se aninhando nos meus pés. Ela ainda não se chamava Mel. Ganhou esse nome por conta da minha fase Spice Girls e pelo topete à la Melanie B, a Scary.

Desde então, Melanie passou a dividir a rotina com a gente. Nessa época, nossa outra cachorra, a Monalisa, teve várias crises epiléticas numa semana. Cogitou-se dar a Mel, devia estar deixando a outra agitada. E, de fato, deixava. Tomava a comida dela e brigava se ela passasse perto de um biscoito enterrado.

Mas o amor foi mais forte. E até a Mona passou a respeitar aquela figura espevitada, "trator", que tentava morder até pitt bull. A figura que dava um tapa na vasilha de comida quando não ia com a cara da ração. Ou que guardava um pão de queijo por dias, só pelo prazer de vigiá-lo e implicar com quem quer que passasse perto.

Mel chegou como um bebê, alguém mais frágil que eu, e envelheceu nesse meu curto espaço de 10 anos, em que deixei de ser uma menina fã de Spice Girls para virar uma mulher com um emprego, dita cidadã respeitável que ganha dois mil cruzeiros por mês. Foi tanto chão nesse intervalo e tudo mostra-se frágil agora.

Enquanto eu era transformada pela rotina e obrigações e descobertas, a Mel deixou de ser um filhote e virou minha irmã mais velha, a irmã que eu não tive. Aquela figura forte, que fica sentada na velha cadeira perto da porta, que dá o recado só pelo olhar. Aquela figura a quem pedimos a benção em silêncio antes de sair. A Mel virou minha avó. Enquanto eu virei esse rosto em 10 anos, virei esse intervalo, a Mel foi meu bebê, minha irmã e minha avó. Foi toda a natureza, todo o infinito, todo o tempo.

Eu queria estar dizendo tudo isso pra ela, tão frágil em seus últimos momentos de vida. Mas tenho certeza de que ela sabe de tudo. Sei que ela se lembrou, a cada segundo, do amor que construímos: ela parte da nossa família e da nossa alma una.

A você, Melzinha, que só trouxe beleza e força à minha vida; que me mostrou o valor da lealdade e do afeto irrestrito, obrigada! Você, agora, é nossa oração.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

para arlecchino

São impressões tão antigas que encontro dificuldade pra dizer o que está dito a cada segundo pelos meus olhos: é que sempre fomos. Sempre fomos, meu amor, desde que dona Teté correu de Sítio dos Nunes para a Serra Talhada, sempre fomos. Desde que um pequeno delicado nasceu na terra dos matadores. Desde que você e sua mãe foram abraçados por Brasília, um abraço desajeitado, cheio de quinas e ossos, daqueles que espetam. Somos tão antigos quanto a poeira dessa cidade. Somos desde que um tal José veio de São Paulo parncontrou uma tal Maria. Desde que, traçados irônicos os dessa Brasília, vocês foram morar na quadra da minha avô emprestada, presente de madrinha. Desde que nunca nos vimos. Somos a mesma brincadeira tímida, o mesmo verão televisão-palavras. O mesmo medo de escuro, medo de ficar sozinho na escola depois que todas as crianças iam embora, medo de que o ar não nos molhasse os dedos à noite, quando elas dormiam tão quietas. O mesmo olhar encantado diante da chuva na janela. Até o choro de felicidade vem de um lugar muito parecido, a mesma fonte, aquela que nos torna pequenos diante de tantas belezas do mundo. Quem sabe você não caminhava pelos bosques de superquadra enquanto eu andava de moletom lilás pelas ruas do Guará, soprando flores até que ganhassem o céu? Ou então enquanto eu media o tamanho da minha sombra no asfalto? Quem sabe você também não se perguntou por que ela estava sempre lá, e era impossível fugir? Quem sabe não inventou uma receita com leite ninho e chocolate no liquidificador, pra parecer milkshake? Acho que inventamos tudo isso, sem saber que inventávamos nosso próprio encontro. Porque eu miro seus olhos e vejo todas as minhas velhas imagens, coisas tão antigas que não sei se são recordos ou registros de antes, da terra, de estrelas, essa matéria de que somos feitos.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

correspondências

Sem muito ânimo pra continuar o diário porteño agora, assim, de lógicacronológica de calendários. Sem muito ânimo pro carnaval, apesar da alma festeira. As ruas se enchem de orquestra e serpentina, mas me parece uma coisa que chega alheia, de fora pra dentro, como um esforço. Mas há sempre as máscaras.

O bloco passa na quadra ao lado e eu preparo meu corpo com as correspondências de Clarice. Em uma, ao então marido, escreveu das aventuras na fazenda e da impaciência, que tolices estaria dizendo? Ele respondeu, entre formalidades de diplomata:

Somente uma coisa me faria bem agora. Seria adormecer a cabeça no seu colo, você me dizendo bobagenzinhas gostosas pra eu esquecer a ruindade do mundo. Vou dormir pensando nisso.

Nossa correspondência começa agora, antes mesmo da máquina de escrever e da casa nova. Notícias da Chuva.

18 dias no Japão

Foram 18 dias de sonho e muitas caminhadas pelo Japão. Começamos por Tokyo, onde ficamos por 4 dias. A ideia era entrarmos em contato com c...