segunda-feira, 28 de março de 2016

A Semana Santa nas Filipinas como experiência metafísica

Nas Filipinas, a fé pode até não mover montanhas, mas é capaz de levar milhares de pessoas às ruas na Semana Santa para vivenciar coletivamente a paixão de Cristo. É uma catarse, sem dúvidas. O país, que tem a terceira maior população católica no mundo, é conhecido pelos episódios de crucificação e auto-flagelação de parte dos fiéis.
Para compreender a importância que a data tem no calendário local, é preciso olhar para o passado. O primeiro país a colonizar as Filipinas foi a Espanha. Com isso, vieram a fé católica e os processos de catequização das populações indígenas, da mesma forma como aconteceu no Brasil. A herança colonial pode ser percebida nos números: as Filipinas são o único país asiático com população predominantemente cristã, com exceção do Timor Leste. São 92,5% de cristãos, dos quais 81% são católicos. É muita gente.
Agora imaginem toda essa massa de fiéis indo às ruas. A Semana Santa, aqui em Manila, é caracterizada principalmente pela Visita Iglesia, que é uma espécie de peregrinação por ao menos 7 igrejas próximas na sequência. A rigor, essa visita deveria ser feita na Quinta-Feira Santa, mas aqui o calendário se expande e muitos fiéis começam a fazer o percurso antes, no Domingo de Ramos. Muitos também escolhem visitar não 7, mas 14 igrejas. Dia desses, vi inclusive o anúncio de uma visita formatada para ser feita de bicicleta. Há diversos roteiros, incluindo igrejas em todos os pontos da cidade. A tradição é tão importante que existe ate um site, Visita Iglesia Online, feito para os filipinos que moram fora do país acompanharem as homilias e se sentirem parte das celebrações.
Autoflagelação é uma das práticas comuns na chamada "penitensya"

 Além da Visita Iglesia, outro aspecto que caracteriza a Semana Santa nas Filipinas é a chamada penitensya (penitência em tagalo, o idioma local). É comum ver a multidão abrir caminho para grupos que passam se autoflagelando. Num primeiro contato, achei chocante ver pessoas completamente ensanguentadas seguindo sob o sol quente do auge do verão filipino. Quando compreendi a dimensão da fé no país, no entanto, vi o fanatismo com menos preconceito.

O ápice da fé - ou do fanatismo, de acordo com a interpretação - talvez seja a crucificação. Nas encenações da Paixão de Cristo, há fiéis que se pregam à cruz de verdade, no intuito de vivenciar na pele o sofrimento de Jesus. Algumas províncias no país tornaram-se conhecidas pelas crucificações. A principal delas é Pampanga, onde milhares de católicos seguem em procissões sob um sol de rachar até culminar na encenação da morte na cruz.
A crucificação é outra prática comum na Semana Santa
É neste momento que fiéis se candidatam. Há uma crença popular de que tamanha entrega traga curas e outras graças, além de expiar os pecados. Embora a Igreja Católica desencoraje a prática, há um entendimento de que se trata de uma manifestação cultural e que, portanto, não há de se proibir. O que o Departamento de Saúde faz, no caso, é alertar sobre os riscos de tétano e sobre a importância da utilização de pregos esterelizados.
Como tenho um bebê de 1 ano, ainda não viajei até Pampanga para ver a crucificação. Achei mais seguro participar das celebrações aqui em Manila, perto da minha casa. Eis algo, para mim, muito interessante no país: as procissões estão espalhadas por toda a cidade. Nós optamos por fazer a Visita Iglesia pela manhã bem cedo, de modo a evitar o calor e as grandes aglomerações. Bem, não teve muito jeito. O verão nas Filipinas é impiedoso não importa a hora. E, quanto às multidões, não é possível fugir delas quando o assunto é fé cristã.
Fiéis rezam na Igreja de S. Judas

Colar de sampaguita, flor tradicional daqui, é depositado junto a Jesus
Começamos nosso roteiro pela Igreja de Nossa Senhora de Montserrat, onde funciona o monastério beneditino. A escolha foi bastante afetiva, já que meu marido estudou a vida toda no Colégio de São Bento, no Rio. Optamos por não fazer um roteiro muito fechado das 7 igrejas. A ideia era ir andando e visitar as que fossem aparecendo pelo caminho. O percurso merece uma observação: mesmo sem mapas ou endereços, é possível saber onde há uma igreja próxima apenas seguindo o fluxo dos fiéis. É muita gente caminhando - todo mundo devidamente protegido por um guarda-sol. Vimos muitos grupos fazendo a peregrinação e era comum identificá-los pelas camisetas personalizadas, geralmente com o rosto de Jesus e o nome da família.
Passamos pela Igreja de São Judas e depois pela Igreja de São Miguel Arcanjo. De lá, precisamos pegar um triciclo (meio de transporte típico das Filipinas) para chegarmos até a Catedral de Manila, talvez a igreja mais importante, localizada na cidade histórica de Intramuros. Foi lá que encontramos a maior aglomeração de fiéis. Em geral, as pessoas param em frente a cada estação da Via Sacra e fazem suas orações. A movimentação lá dentro era bem difícil. Do lado de fora, o assédio dos ambulantes era forte. Os vendedores aproveitam a data para oferecer todo tipo de artigos religiosos.
A Semana Santa movimenta a economia local
Encerramos a jornada na Igreja de Santo Agostinho, poucos metros distante da Catedral. Era a quinta igreja que visitávamos na manhã da Sexta Feira Santa quando nosso filhote começou a se incomodar muito com o calor e o cansaço. Mesmo não tendo cumprido a rota das 7 igrejas, como manda a tradição local, fomos para casa com uma ótima recordação e com a alegria de termos feito parte de um programa tipicamente filipino.
Em frente à Catedral de Manila ao fim da Visita Iglesia

A invasão brasileira no mundo da moda e do entretenimento

Assim que me mudei para Manila, sempre que dizia ser brasileira, as pessoas citavam não as óbvias referências de sempre: Pelé, Neymar, Gisele Bündchen. Os locais abriam seu melhor sorriso de empolgação e falavam: “Oh, Brasil! Daniel Matsunaga!”. Eu ficava sem graça por não ter a menor idéia de quem fosse essa pessoa. Intrigada, resolvi pesquisar. Descobri que se trata de um modelo nipo-brasileiro que fez carreira aqui e hoje é ator e celebridade local.
E ele não é o único. A lista de modelos brasileiros que fazem sucesso nas Filipinas é extensa. Há ao menos quatro que se deram muito bem no show business. Começaram fazendo fotos e hoje são atores/apresentadores/celebridades. Pesquisei sobre cada um deles para saber o que há de comum em suas trajetórias. Em geral, eles têm alguma ascendência oriental e começaram a carreira em outros países asiáticos - como Tailândia, Japão e China – após terem sido descobertos por olheiros no Brasil.
Daiana Menezes é uma celebridade por aqui
A precursora da chamada "invasão brasileira" foi a modelo e atriz Daiana Menezes, que vive nas Filipinas há 9 anos e hoje é casada com um político local. O pulo do gato para Daiana foi ser selecionada para um programa de auditório super popular por aqui, o Eat Bulaga (uma espécie de Silvio Santos misturado com Pânico, eu diria). A partir daí, ela se tornou uma celebridade instantânea. Passou a estampar capas de revistas e a estrelar anúncios de quase todos os produtos imagináveis.

Conheci Daiana pessoalmente durante uma festa em comemoração ao carnaval, organizada por brasileiros que moram em Manila. Dividimos a mesma mesa e ali ficou claro para mim que ela era uma celebridade. Todos a conheciam. A mãe dela, que também estava na festa, me contou que deixou o Brasil para acompanhar de perto a carreira da filha, que ganhou proporções gigantescas.
Quem seguiu os passos de Daiana Menezes foi Priscilla Meirelles, que também fez participações no Eat Bulaga e hoje é atriz de novelas num canal aberto de grande apelo popular. Priscilla é casada com John Estrada, um ator filipino bastante famoso. Paralelamente à carreira de atriz e modelo, ela dedica-se ao interessante projeto Brazilian Bakery. A marca, criada por ela, salva a vida dos brasileiros perdidos em Manila (como eu) ao vender pão de queijo, pastel, coxinha e brigadeiro. Delícia.
A modelo Priscilla Meirelles em frente à sua Brazilian Bakery
Mas voltemos à invasão brasileira. No time masculino, os maiores destaques são Daniel Matsunaga, Fabio Ide e Akihiro Sato. Todos começaram como modelos e hoje são atores. Este parece ser o principal ponto comum entre todos os brasileiros que fazem sucesso por aqui: todos almejavam entrar no mundo do entretenimento e investiram em mandar fitas para as emissoras de TV.
Fabio Ide e Daniel Matsunaga são sucesso na televisão
Neste sentido, as Filipinas têm muito em comum com o Brasil. A televisão aberta é um fenômeno aqui neste arquipélago e a programação é tão popularesca quanto a brasileira. Os filipinos amam telenovelas e programas de auditório com shows de calouros, mulheres bonitas e assistencialismo. Basicamente a mesmíssima fórmula que há décadas dá audiência no Brasil. Tanto aqui como lá, conseguir um lugar ao sol na TV é um trampolim para o estrelato.
Mas nem tudo são flores na vida dos modelos brasileiros que vêm trabalhar nas Filipinas. Como o país tem um acordo de reciprocidade com o Brasil na isenção de visto de turismo, muitos contam com isso e chegam aqui sem a permissão de trabalho, colocando-se, assim, numa situação de grande vulnerabilidade.
Sem o visto adequado para trabalhar, acabam dando margem para empregadores mal intencionados. Enquanto não emplacam, muitos modelos ganham um salário abaixo do piso e dividem kitchenettes minúsculas com vários colegas. Um cenário bem longe do glamour idealizado.
Para evitar que jovens caiam em armadilhas, o governo brasileiro preparou uma cartilha de orientações na qual descreve as principais dificuldades que têm sido enfrentadas por profissionais que saem para trabalhar fora do país.
A questão dos modelos nas Filipinas é tão premente que mereceu um tópico específico na publicação:
“Há muitos modelos brasileiros, homens e mulheres, trabalhando nas Filipinas. Não há registro de maus tratos ou exploração laboral, mas registram-se ocasionalmente casos de dificuldades. O fator mais problemático decorre do status migratório irregular de alguns profissionais. Muitos viajam ao país como turistas e começam a trabalhar antes de obter o visto adequado, colocando-se em situação de irregularidade e vulnerabilidade.”
Observando o sucesso e também as dificuldades enfrentadas pelos modelos brasileiros nas Filipinas, eu aconselharia que todos os interessados dessem uma lida na cartilha e viessem com toda a documentação correta, de modo a evitar cair na mão de aproveitadores e oportunistas. Sonhar sim e correr atrás do sonho, mas com os pés no chão e cautela.

Reflexões sobre a mobilidade urbana em Manila

Estive de férias em Seul, na Coreia do Sul, e fiquei impressionada com a mobilidade urbana de que pudemos desfrutar na cidade. Além do transporte público impecável, me chamou a atenção o fato de as avenidas serem largas e de os pedestres circularem confortavelmente em calçadas super conservadas. Empurrar o carrinho de bebê por lá era quase flutuar se comparado à minha experiência diária em Manila, capital das Filipinas.
Sei que a realidade dos dois países é completamente diversa e a comparação soa um tanto descabida, mas foi inevitável pensar em como faz diferença uma cidade em que se possa circular a pé de forma confortável, sem se preocupar - literalmente - com os percalços do caminho.
Aqui em Manila, tenho a sensação de que a cidade foi pensada para os carros. Ou melhor, de que não foi pensada. O trânsito é absolutamente caótico. Amigos com carro chegam a passar 4 horas do dia presos em engarrafamentos no percurso casa/trabalho, o transporte público é precário e não parece haver um esforço governamental no sentido de mudar o cenário.
Com o intuito de fugir do estresse, optamos por não ter carro. Para que tal decisão fosse viável, contamos com a sorte de morarmos a dois minutos do trabalho do meu marido. Podemos fazer tudo a pé. E é sobre isso que os nossos 10 dias em Seul me fizeram pensar.
Lembro-me de uma das primeiras entrevistas que fiz, quando ainda era estudante de Jornalismo. Lá se vão uns 12 anos. Eu conversei com uma professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília sobre a mobilidade urbana na cidade. Chegamos ao assunto das calçadas pouco conservadas em uma das principais avenidas da capital. A professora, então, citou um trecho da canção “Carioca”, do Chico Buarque, para ilustrar seu ponto:
Cidade maravilhosa, és minha. O poente na espinha das tuas montanhas quase arromba as retinas de quem vê.
No que ela emendou: “como alguém pode ter as retinas arrombadas pela paisagem se é preciso andar preocupado em não tropeçar ou não ser atropelado?”
Faz todo o sentido. Uma cidade pensada para pedestres favorece a contemplação e o encantamento.
Em Manila, as calçadas são absolutamente estreitas e, por muitas vezes, ausentes. Nesses casos, é preciso caminhar pelo acostamento, dividindo espaço com carros, jeepneys (o transporte público tradicional das Filipinas), motos e triciclos. Na época das chuvas e tufões, que dura vários meses (basicamente de junho a novembro) é preciso, ainda, tomar cuidado para desviar das poças d’água no caminho. Conseguiram imaginar? Pois é, muitas vezes é inevitável se dar mal e cair nelas. Melhor do que ser atropelado, enfim. Keep walking, Charlie Brown!

Caminhar com o carrinho de bebê, então, não é algo exatamente agradável. E olha que eu moro em um bairro com bastante infraestrutura. Minha intenção não é detonar Manila, até porque a cidade oferece uma série de coisas interessantes – sendo a principal delas, para mim, a simpatia e cordialidade do povo filipino. Mas, no quesito conforto para pedestres, não há mesmo como tapar o sol com a peneira. O único bairro em que sinto que os pedestres foram levados em consideração é Bonifacio Global City, onde há a chamada "High Street", uma rua bastante extensa, cheia de lojas e amplas calçadas. Lá não é permitida a passagem de carros.
Bom, é bem bacana, mas se trata de um centro comercial. O conforto foi pensado para que as pessoas passem momentos agradáveis enquanto olham vitrines e compram. Claro, essa dinâmica não é privilégio de Manila. Várias cidades têm suas ruas exclusivas para pedestres, cercadas por lojinhas. Mas por que não expandir essa lógica para outros espaços não ligados ao comércio?
Se eu passo sufoco empurrando um carrinho de bebê, penso que a vida de um cadeirante deva ser bem difícil em Manila. Não por acaso, nunca vi nenhum circulando pelas ruas da cidade. Talvez tenha visto no shopping, mas nunca nos espaços públicos de convivência ao ar livre. Até existe um esforço, já que algumas calçadas apresentam rampas sinalizadas. No entanto, é tudo muito incerto e irregular. Em frente à minha casa, por exemplo, há uma calçada com rampa dando acesso à pista. A calçada seguinte, por sua vez, não tem. De que adianta?


Para um simples passeio com meu filho no parque, é preciso fazer mil malabarismos para subir e descer meios-fios o tempo todo, além de prestar atenção nos carros vindos de todos os lados e que buzinam por qualquer bobagem. Em Seul, por sua vez, eu tinha vontade de sair apenas para flanar, mesmo sem roteiro prévio, certa de que a experiência seria suave.
Outro dado sobre mobilidade e acessibilidade que me chamou a atenção na capital sul-coreana: além das rampas, há frisos para pessoas com deficiência visual ao longo de todas as principais calçadas e não somente no metrô e outros pontos localizados, como acontece no Brasil. É bonito ver esse cuidado.
Sei que há um abismo que separa Manila desta realidade, mas sonho com o dia em que a capital filipina fará a opção por não privilegiar o carro e possa crescer de forma sustentável. Porque, do jeito que as coisas vão, não sei como será Manila daqui a 15 anos. Penso que a mobilidade será impossível ou, ao menos, muito sofrida.
Para 2016, portanto, desejo que possamos caminhar mais e contemplar mais, sem medo – seja da violência urbana ou do caos do trânsito. Que nossas retinas sejam arrombadas pelas belezas cotidianas escondidas na correria nossa de cada dia. Amém!

18 dias no Japão

Foram 18 dias de sonho e muitas caminhadas pelo Japão. Começamos por Tokyo, onde ficamos por 4 dias. A ideia era entrarmos em contato com c...