terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A vida em Manila #2

Passado o susto inicial, começo a transitar pela cidade com mais leveza.  Olhando para trás, vejo como fiquei intimidada pela nova paisagem de Manila. Minha postura corporal, outrora de defensiva, vai dando lugar a um corpo de quem mora na cidade. De quem, aos poucos, vai se sentindo em casa. Para isso, foi importante controlar a afobação e, sem pressa, encontrar pequenos respiros, confortos. Como o parque aqui perto de casa. O mercadinho de sábado. O restaurante italiano com manjericão colhido na hora e forno a lenha. O café, a mesa-de-que-mais-gosto, o salão de beleza para fazer as unhas. Lugares onde eu não sentisse medo, enfim, e pudesse simplesmente baixar a guarda.

Cada vez mais penso que parte importante do processo é sair da vibe turista e entrar no ritmo do lugar. O turista tem uma sede absurda de conhecer tudo, de apreender tudo, tem um ritmo frenético de capturar as coisas. Eu carrego comigo essa sede. Foi assim em quase todas as minhas viagens. Mas, aqui, senti diferente.

Demorei para conseguir tirar fotos e fiquei pensando o que poderia estar por trás dessa minha falta de intimidade com a câmera aqui - logo eu, que amo fotografar tudo! Percebi que eu me sentia invadindo um espaço - qual espaço? -, "roubando" momentos de algo que eu não havia ainda compreendido bem na alma. A fotografia, neste sentido, é uma arte tão relacional, não é? Não existe objeto que não exponha o fotógrafo, que não escancare esta relação que se estabelece. Claro, acho que tem gente que fotografa no automático e nem pensa nisso. Mas eu não dou conta. Achei péssimas todas as minhas fotos das primeiras semanas aqui. E é engraçado. São fotos feitas de longe, de quem não se coloca na cena.

Me lembrei de quando participei de uma vivência com os Kayapó, em 2006. As primeiras fotos que tirei, ainda sob o olhar do exótico, também traziam essa distância. Eram crianças brincando, e eu ainda tímida, de longe, sem saber como me colocar. O olhar delas para mim era de desconfiança. Ainda não havia se estabelecido a relação de que falo. Num dado momento, deixei a câmera de lado e passei a brincar com elas. De roda, de desenhar, de um bocado de coisas. Só depois, bem mais tarde, voltei a fotografar. As fotos ganharam outra potência. Ganharam proximidade, não no sentido de lente, zoom, nada disso. No sentido de afeto mesmo. Era como se eu pudesse me aproximar da pele daquelas crianças, pudesse dançar com elas. Elas deram abertura para que eu fosse uma delas. E eu dei abertura para vê-las, de fato, como crianças.

É neste sentido que ainda encontro alguma dificuldade para fotografar pessoas por aqui. Ainda estamos tateando. Nos olhando neste jogo de espelhos, de alteridades. Acho que é uma questão de tempo. E que bom, que privilégio, ter este tempo!

Buscando essa aproximação, achei que já era tempo e me matriculei num curso de travel and cultural documentary photography. As aulas começam nesta quinta-feira. Na verdade, é um workshop de três dias, com aula teórica, saída de campo para uma cidade próxima a ser escolhida pelo professor e posterior análise da nossa produção. Estou na maior ansiedade. Depois conto aqui como foi o curso.

Escrevo e Felipe chuta forte na barriga. Ele sempre chuta em sessões de cinema, escritos, programas culturais. Fico achando lindo. Na verdade, quem faz essa projeção sou eu, claro, rsrs. O bichinho está apenas crescendo. Logo entraremos no sétimo mês. O que me deixa especialmente emotiva, porque nasci prematura de 7 meses.

Como eu reagiria se ele nascesse agora? Falta tanto chão! Como eu construí, ao longo da minha vida, este chão que me faltou, este restinho de caminhada? Fico divagando, nessa jornada intensa e doida que é a maternidade, enquanto busco minhas maneiras de pertencer ao novo país que nos acolhe.

Eu, que sempre tive como temas obsessivos a tal coragem de pertencer ao desconhecido, a poética dos abismos, do salto no vazio...vejo que, sem perceber, me lancei exatamente na corporificação destas ideias.

Gerar e carregar um filho é pertencer ao desconhecido. O medo do parto é pertencer ao desconhecido. Parir é pertencer ao desconhecido. Criar um ser humano, com todos os seus melhores valores e suas sombras, é pertencer ao desconhecido. Tudo isso fisicamente longe da sua rede de afetos, daqueles que sempre foram o abrigo-quando-o-peito-aperta...isso é duplamente pertencer ao desconhecido! É descobrir novos caminhos, novos sentidos, a cada dia.

Sobretudo, é ver crescer o amor pelo companheiro que hoje é meu grande suporte. Porque somos só nos três aqui nesse arquipélago de sete mil ilhas, este punhado de terra cercado de água, tantas águas, um lar de câncer, escorpião e peixes. Como diz meu amigo Adriano Godoi: isso não é uma casa, é um tsunami! Verbo: eu sinto. Um explode, a outra guarda e remói, o outro ainda nos é mistério. Mas mergulhamos todos no grande mistério que é nascermos, juntos, desta nova experiência.


Frangipanis em Manila: flores perto das quais me sinto em casa



Um comentário:

Anônimo disse...

bem-vinda ao mergulho... ao sempre novo e desconhecido, ao deslumbramento de descobrir sempre: com a alma, com a câmera, com as mãos como cego em gafieira...
Pode contar com a minha cúmplicidade e seguir o blog de celminha 30 wordpress
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