Quem me conhece sabe: sofro com rinite alérgica desde que nasci. Lá se vão 30 anos de todo o tipo de tratamento, incluindo alopatia, homeopatia, vacinas em forma de injeção, loratadina, desloratadina, nebulizador, sterilair e por aí caminha meu brainstorm alérgico. Minha vida, portanto, sempre foi cheia de "cuidados", qual o Thomas J., do Meu Primeiro Amor.
Se viajava e ficava hospedada numa pousada mais rústica, logo o nariz começava a coçar loucamente, o olho lacrimejava e tinha início a sessão de espirros intermináveis. Tudo me sensibilizava: mofo, poeira, lençol um pouco mais antigo, jornal, mosquiteiros, carpete, pelo de gato, perfume floral, mudança de temperatura. Mudar de ambiente, por sinal, era sempre tenso. Era sair da sombra e ir pro sol para começar a espirrar. Já cheguei a parar o caro no acostamento para ter minha sessão de espirros em segurança.
Na infância, a lembrança que tenho é a da minha mãe dando como primeiras instruções para as diaristas: tirar a poeira do quarto da Dany. Não sei dizer em que momento a coisa começou a melhorar. Acho que foi na vida adulta mesmo, saindo de casa, quando a gente começa a não conseguir limpar tudo com o mesmo cuidado de mãe, risos. Acho que meu organismo teve que criar vergonha na cara na marra. Aí resolvi barbarizar e arrumei dois gatos. Numa kit. O primeiro mês foi o inferno. Tomei Desalex todo santo dia, até que um dia eu melhorei.
Brinco que apostei na medicina medieval de insistir no contato até o organismo parar de entrar em colapso. Mas claro que busquei outras coisas. Fiz, por exemplo, a cirurgia de desvio de septo, que melhorou bastante minha respiração, sobre a qual eu já falei aqui. Não foi só esperar a cura cair do céu.
Tudo estava lindo, até eu me mudar para as Filipinas. O combo poluição + ar condicionado me nocauteou. Aqui faz muito calor e todo lugar tem ar condicionado sapecando no máximo. Ou mínimo. Sei lá. Só sei que você sai de um bafo de calor na rua e entra no Pólo Norte a cada ambiente interno em que resolva entrar. O ar é onipresente, inclusive em casa. Às vezes, só é possível dormir com o bicho ligado. E aí, sem perceber, comecei a desenvolver uma alergia sobrenatural nesses dois meses aqui.
A primeira crise na Ásia
No início, parecia uma gripe com muita irritação na garganta e tosse. Só que a suposta gripe não ia embora nunca e eu passei a desconfiar que a rinite poderia estar de volta. Diante dessa suspeita, o que fazer? Tomar antialérgico na gravidez me parecia um sacrilégio. Resolvi, antes, tentar a vida sem ar condicionado (eu já desconfiava que ele fosse o vilão).
Capitulei no primeiro dia. Quer dizer, na primeira noite. Dormi com a janela aberta e fui atacada por pernilongos asiáticos indóceis. E, eu asseguro, eles são da pior espécie. Deve ter sido a noite mais mal dormida dos últimos tempos. Tive de escolher entre morrer de calor ou devorada pelos mosquitos. Como também tenho alergia a picada de pernilongo, fechei a porta da varanda e escolhi morrer de calor.
Mas é claro que a coisa sempre pode ficar pior: um pernilongo maledetto ficou preso no quarto e, só de raiva, não parou de zumbizar no meu ouvido. A solução, no desespero, foi cobrir meu corpo todo, inclusive a cabeça. No calor de rachar sem ar condicionado, lá estava eu, feito uma múmia, toda enrolada a me proteger no pernilongo. E tossindo. E espirrando. João, é claro, já havia ido dormir no outro quarto há muito tempo, que ele não é besta.
Acordei decidida a marcar uma consulta com a obstetra. Eu precisava de ajuda. Ela me examinou e disse que tinha toda a cara de ser mesmo uma crise alérgica. Começou a preencher o receituário e, de repente, eu reconheci: loratadine! Não contive meu sorriso. Ela não só estava permitindo que eu tomasse remédio, como estava indicando o que eu já conheço e sei que funciona! Perguntei se era seguro para o bebê e ela disse que sim, que era um remédio baby friendly.
Bom, acho que nenhum remédio deve ser 100% baby friendly, mas a gente precisa deixar os radicalismos de lado e pensar no que é melhor. Eu já estava há mais de duas semanas sofrendo, sem querer tomar remédio. Havia chegado no meu limite. Acho que meu filho prefere me ver bem e feliz, dormindo bem, de bom humor, do que tossindo e espirrando o dia todo.
Vi que não adiantaria brigar com todo o sistema de ar condicionado das Filipinas e resolvi aceitar a medicação. Combinei com a médica de fazermos o teste por uma semana. Se os sintomas sumirem, teremos certeza de que é realmente só uma crise alérgica.
Tudo isso me faz pensar que o processo de se mudar, além de toda a questão emocional/cultural da adaptação, envolve também a parte corporal, fisiológica. Adaptar o corpo a novos ares, novos hábitos, adquirir outros anticorpos. O processo é muito mais complexo do que a gente imagina. A regência do verbo diz muito. Não é "mudar", apenas. É "se mudar". Mudar a si mesmo, o tempo todo, diante do contato com o outro - seja o outro um espaço ou uma pessoa.
Penso que fazer isso grávida é duplamente desafiador. Amplia a outridade. Enquanto espero o almoço no restaurante que fica dentro do hospital, peço desculpas ao meu filhote por não ser valente o suficiente para aguentar sem remédios. Depois penso que valentia é encarar esse duplo twist carpado cultural com ele na barriga. Você já nascerá sob este signo, meu gatinho. O da tolerância e dos mergulhos no desconhecido. Para além do grande mergulho que já é nascer.
Penso sempre em você, a cada segundo do meu dia. Agora vou deixar o café onde escrevo essas linhas para fazer um ultrassom e ver sua carinha. Dra. Henson, toda vez que escuta seu coração, diz que você é um bebê muito alegre. Eu sinto gratidão por você manter sua alegria mesmo quando eu estou um caco. Sinto gratidão simplesmente porque você existe!
Vamos nos curar da alergia, porque cada tosse deve ser um terremoto aí para você. E eu quero você bem bonitinho e faceiro!
Amo você, coisa miúda!
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
A vida em Manila #2
Passado o susto inicial, começo a transitar pela cidade com mais leveza. Olhando para trás, vejo como fiquei intimidada pela nova paisagem de Manila. Minha postura corporal, outrora de defensiva, vai dando lugar a um corpo de quem mora na cidade. De quem, aos poucos, vai se sentindo em casa. Para isso, foi importante controlar a afobação e, sem pressa, encontrar pequenos respiros, confortos. Como o parque aqui perto de casa. O mercadinho de sábado. O restaurante italiano com manjericão colhido na hora e forno a lenha. O café, a mesa-de-que-mais-gosto, o salão de beleza para fazer as unhas. Lugares onde eu não sentisse medo, enfim, e pudesse simplesmente baixar a guarda.
Cada vez mais penso que parte importante do processo é sair da vibe turista e entrar no ritmo do lugar. O turista tem uma sede absurda de conhecer tudo, de apreender tudo, tem um ritmo frenético de capturar as coisas. Eu carrego comigo essa sede. Foi assim em quase todas as minhas viagens. Mas, aqui, senti diferente.
Demorei para conseguir tirar fotos e fiquei pensando o que poderia estar por trás dessa minha falta de intimidade com a câmera aqui - logo eu, que amo fotografar tudo! Percebi que eu me sentia invadindo um espaço - qual espaço? -, "roubando" momentos de algo que eu não havia ainda compreendido bem na alma. A fotografia, neste sentido, é uma arte tão relacional, não é? Não existe objeto que não exponha o fotógrafo, que não escancare esta relação que se estabelece. Claro, acho que tem gente que fotografa no automático e nem pensa nisso. Mas eu não dou conta. Achei péssimas todas as minhas fotos das primeiras semanas aqui. E é engraçado. São fotos feitas de longe, de quem não se coloca na cena.
Me lembrei de quando participei de uma vivência com os Kayapó, em 2006. As primeiras fotos que tirei, ainda sob o olhar do exótico, também traziam essa distância. Eram crianças brincando, e eu ainda tímida, de longe, sem saber como me colocar. O olhar delas para mim era de desconfiança. Ainda não havia se estabelecido a relação de que falo. Num dado momento, deixei a câmera de lado e passei a brincar com elas. De roda, de desenhar, de um bocado de coisas. Só depois, bem mais tarde, voltei a fotografar. As fotos ganharam outra potência. Ganharam proximidade, não no sentido de lente, zoom, nada disso. No sentido de afeto mesmo. Era como se eu pudesse me aproximar da pele daquelas crianças, pudesse dançar com elas. Elas deram abertura para que eu fosse uma delas. E eu dei abertura para vê-las, de fato, como crianças.
É neste sentido que ainda encontro alguma dificuldade para fotografar pessoas por aqui. Ainda estamos tateando. Nos olhando neste jogo de espelhos, de alteridades. Acho que é uma questão de tempo. E que bom, que privilégio, ter este tempo!
Buscando essa aproximação, achei que já era tempo e me matriculei num curso de travel and cultural documentary photography. As aulas começam nesta quinta-feira. Na verdade, é um workshop de três dias, com aula teórica, saída de campo para uma cidade próxima a ser escolhida pelo professor e posterior análise da nossa produção. Estou na maior ansiedade. Depois conto aqui como foi o curso.
Escrevo e Felipe chuta forte na barriga. Ele sempre chuta em sessões de cinema, escritos, programas culturais. Fico achando lindo. Na verdade, quem faz essa projeção sou eu, claro, rsrs. O bichinho está apenas crescendo. Logo entraremos no sétimo mês. O que me deixa especialmente emotiva, porque nasci prematura de 7 meses.
Como eu reagiria se ele nascesse agora? Falta tanto chão! Como eu construí, ao longo da minha vida, este chão que me faltou, este restinho de caminhada? Fico divagando, nessa jornada intensa e doida que é a maternidade, enquanto busco minhas maneiras de pertencer ao novo país que nos acolhe.
Eu, que sempre tive como temas obsessivos a tal coragem de pertencer ao desconhecido, a poética dos abismos, do salto no vazio...vejo que, sem perceber, me lancei exatamente na corporificação destas ideias.
Gerar e carregar um filho é pertencer ao desconhecido. O medo do parto é pertencer ao desconhecido. Parir é pertencer ao desconhecido. Criar um ser humano, com todos os seus melhores valores e suas sombras, é pertencer ao desconhecido. Tudo isso fisicamente longe da sua rede de afetos, daqueles que sempre foram o abrigo-quando-o-peito-aperta...isso é duplamente pertencer ao desconhecido! É descobrir novos caminhos, novos sentidos, a cada dia.
Sobretudo, é ver crescer o amor pelo companheiro que hoje é meu grande suporte. Porque somos só nos três aqui nesse arquipélago de sete mil ilhas, este punhado de terra cercado de água, tantas águas, um lar de câncer, escorpião e peixes. Como diz meu amigo Adriano Godoi: isso não é uma casa, é um tsunami! Verbo: eu sinto. Um explode, a outra guarda e remói, o outro ainda nos é mistério. Mas mergulhamos todos no grande mistério que é nascermos, juntos, desta nova experiência.
Cada vez mais penso que parte importante do processo é sair da vibe turista e entrar no ritmo do lugar. O turista tem uma sede absurda de conhecer tudo, de apreender tudo, tem um ritmo frenético de capturar as coisas. Eu carrego comigo essa sede. Foi assim em quase todas as minhas viagens. Mas, aqui, senti diferente.
Demorei para conseguir tirar fotos e fiquei pensando o que poderia estar por trás dessa minha falta de intimidade com a câmera aqui - logo eu, que amo fotografar tudo! Percebi que eu me sentia invadindo um espaço - qual espaço? -, "roubando" momentos de algo que eu não havia ainda compreendido bem na alma. A fotografia, neste sentido, é uma arte tão relacional, não é? Não existe objeto que não exponha o fotógrafo, que não escancare esta relação que se estabelece. Claro, acho que tem gente que fotografa no automático e nem pensa nisso. Mas eu não dou conta. Achei péssimas todas as minhas fotos das primeiras semanas aqui. E é engraçado. São fotos feitas de longe, de quem não se coloca na cena.
Me lembrei de quando participei de uma vivência com os Kayapó, em 2006. As primeiras fotos que tirei, ainda sob o olhar do exótico, também traziam essa distância. Eram crianças brincando, e eu ainda tímida, de longe, sem saber como me colocar. O olhar delas para mim era de desconfiança. Ainda não havia se estabelecido a relação de que falo. Num dado momento, deixei a câmera de lado e passei a brincar com elas. De roda, de desenhar, de um bocado de coisas. Só depois, bem mais tarde, voltei a fotografar. As fotos ganharam outra potência. Ganharam proximidade, não no sentido de lente, zoom, nada disso. No sentido de afeto mesmo. Era como se eu pudesse me aproximar da pele daquelas crianças, pudesse dançar com elas. Elas deram abertura para que eu fosse uma delas. E eu dei abertura para vê-las, de fato, como crianças.
É neste sentido que ainda encontro alguma dificuldade para fotografar pessoas por aqui. Ainda estamos tateando. Nos olhando neste jogo de espelhos, de alteridades. Acho que é uma questão de tempo. E que bom, que privilégio, ter este tempo!
Buscando essa aproximação, achei que já era tempo e me matriculei num curso de travel and cultural documentary photography. As aulas começam nesta quinta-feira. Na verdade, é um workshop de três dias, com aula teórica, saída de campo para uma cidade próxima a ser escolhida pelo professor e posterior análise da nossa produção. Estou na maior ansiedade. Depois conto aqui como foi o curso.
Escrevo e Felipe chuta forte na barriga. Ele sempre chuta em sessões de cinema, escritos, programas culturais. Fico achando lindo. Na verdade, quem faz essa projeção sou eu, claro, rsrs. O bichinho está apenas crescendo. Logo entraremos no sétimo mês. O que me deixa especialmente emotiva, porque nasci prematura de 7 meses.
Como eu reagiria se ele nascesse agora? Falta tanto chão! Como eu construí, ao longo da minha vida, este chão que me faltou, este restinho de caminhada? Fico divagando, nessa jornada intensa e doida que é a maternidade, enquanto busco minhas maneiras de pertencer ao novo país que nos acolhe.
Eu, que sempre tive como temas obsessivos a tal coragem de pertencer ao desconhecido, a poética dos abismos, do salto no vazio...vejo que, sem perceber, me lancei exatamente na corporificação destas ideias.
Gerar e carregar um filho é pertencer ao desconhecido. O medo do parto é pertencer ao desconhecido. Parir é pertencer ao desconhecido. Criar um ser humano, com todos os seus melhores valores e suas sombras, é pertencer ao desconhecido. Tudo isso fisicamente longe da sua rede de afetos, daqueles que sempre foram o abrigo-quando-o-peito-aperta...isso é duplamente pertencer ao desconhecido! É descobrir novos caminhos, novos sentidos, a cada dia.
Sobretudo, é ver crescer o amor pelo companheiro que hoje é meu grande suporte. Porque somos só nos três aqui nesse arquipélago de sete mil ilhas, este punhado de terra cercado de água, tantas águas, um lar de câncer, escorpião e peixes. Como diz meu amigo Adriano Godoi: isso não é uma casa, é um tsunami! Verbo: eu sinto. Um explode, a outra guarda e remói, o outro ainda nos é mistério. Mas mergulhamos todos no grande mistério que é nascermos, juntos, desta nova experiência.
Frangipanis em Manila: flores perto das quais me sinto em casa |
Assinar:
Postagens (Atom)
18 dias no Japão
Foram 18 dias de sonho e muitas caminhadas pelo Japão. Começamos por Tokyo, onde ficamos por 4 dias. A ideia era entrarmos em contato com c...
-
- Mas calminha desse jeito? Não é preciso alarde para quem sabe, no íntimo, ter a força das tempestades e o profundeza das raízes das árvore...
-
Nas Filipinas, a fé pode até não mover montanhas, mas é capaz de levar milhares de pessoas às ruas na Semana Santa para vivenciar coletivam...