terça-feira, 26 de março de 2013

Presente para Nino Quincampoix #1


De onde virão as palavras que moram nos tijolos do velho cinema? Não se sabe ao certo como elas caem da tela, caminham pelo carpete até chegar ao suposto abrigo. Dizem por aí que elas costumam ficar na ponta dos pés a espiar casais. A mais baixa delas, que fugiu de um diálogo barato, se apóia no ombro da irmã sem graça, mocinha decadente de tempos idos. Enquanto Lembrança estica o pescoço para procurar a fama de outrora, dona Desmazelo aproveita a carona. Na verdade, nenhuma delas fez as pazes com o tempo. Uma não se conforma em não haver espelhos nas paredes dos tijolos. A outra, mesmo sem se ver, enxerga-se pequena e velha pela imagem de seu nome. O homem entre elas, Bravo, escala ranhuras com grande rapidez. Quem olhar bem verá que o tijolo do canto esquerdo, aquele perto da cortina, está quebrado em vários pedacinhos. Proeza de Bravo, que alimenta a esperança de um dia salvar todas as palavras presas ali dentro. O senhor Utópico, por sua vez, tenta convencer os colegas de que uma comunidade de palavras é possível, se todos os nomes de todas as coisas em todos os tijolos gritarem em uníssono ao fim da próxima sessão. Encanto está ali, quieta, vendo o filme ora pelos ombros de Lembrança, ora pelos espaços construídos por Bravo. Ninguém sabe ao certo seu rosto. Alguns lanterninhas disseram tê-la visto com sorriso acanhado de mulher. Outros, talvez perturbados pelo sono – ah, as sessões coruja -, refletiram olhos curiosos de um rapaz. Esse é seu mistério. Encanto ganha traços conforme a projeção valsa com nossas retinas.

*Texto escrito em 2007, pós-Balaio Café, em uma terça-feira fora dos planos, semana de calendários em suspenso.

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