8
de março, Dia da Mulher. Dia de receber parabéns, abraços, flores, mensagens de
afirmação nos nossos trabalhos. Lindo. Só
que amanhã é outro dia, mais um dia em que milhares de mulheres vão continuar a
sofrer com a violência doméstica, com diferenças salariais, assédios de todos
os tipos, falta de liberdade.
Amanhã todo mundo esquece a mise-en-scène e outra
Fernanda Grasielly vai ser morta porque ousou terminar um relacionamento, ousou
ser livre e senhora do seu próprio destino. Outra Josiene Azevedo de Carvalho
Pimentel - minha ex-professora de
inglês, diga-se de passagem - vai morrer com um tiro na cabeça porque, “se não
for minha, não vai ser de mais ninguém”. Outras Marias da Penha. Tantas Marias.
Violências
de todo tipo me revoltam, mas a violência de gênero faz meu sangue ferver.
Porque acho que toda mulher já se sentiu assim em algum momento da vida: agredida
pelo simples fato de ser mulher. E isso não é certo. Isso não pode continuar.
Eu
tenho 28 anos e já passei por algumas situações que me fizeram sentir um lixo.
Pequenas situações cotidianas. Aos 11 anos, um cara correu atrás de mim na rua
e tentou me agarrar, me chamando de gostosa.
Eu corri o máximo que pude e entrei na primeira loja que apareceu. Isso
foi no coração do Plano Piloto, numa tarde qualquer. Eu nunca me esqueci desse
dia. Porque eu era uma criança, não tinha essa dimensão de sexualidade, do que
é ser uma “gostosa”. Essa deve ter sido uma das primeiras rupturas minhas com o
mundo. Aquelas diferenciações que nos tiram do conforto do que é conhecido e
nos jogam de cara com a dureza do que é o mundo adulto.
Na
adolescência, perdi a conta de quantas vezes tive que lidar com homens encostando
em mim no ônibus, meio que tirando casquinha na maior cara dura. Vocês, homens
leitores do Poema Lunar, têm ideia de como é você ficar se perguntando se tem algo
errado com você, se é você que está “atraindo” esse tipo de comportamento, permitindo
que invadam seu espaço? Esse
tipo de dúvida pairando na cabeça é cruel.
E, acreditem, todas nós mulheres
passamos por isso em algum momento da nossa vida. Só que falar é ruim, a gente
se expõe, dá receio. Eu escrevo isso aqui como um desabafo e fico o tempo todo
me censurando, pensando se devia publicar isso. Acho que devo. Preciso. Nós
precisamos dizer que não dá mais!
A
situação mais recente que enfrentei foi no meio da faculdade, lá pelos idos de
2004, quando o técnico do laboratório de fotografia me beijou à força e passou
a mão na minha bunda. Estávamos os dois sozinhos no laboratório e eu sou
imensamente grata ao meu anjo da guarda por não ter acontecido nada de mais
grave, porque eu estava absolutamente vulnerável ali.
Lembro
que fiquei em estado de choque, paralisada, e levei uma meia hora para
conseguir esboçar alguma reação. Tudo o que consegui fazer num primeiro momento
foi chorar. Fui para a casa da minha amiga Michelle Mattos, de quem eu sempre
me lembro quando penso o que é uma amiga de verdade.
No
dia seguinte, fui à Delegacia da Mulher registrar um boletim de ocorrência.
Essa foi a segunda parte da violência. Lá, você tem que dizer o que aconteceu
com você na frente de todo mundo que está aguardando para ser atendido. Daí eu
falei. E, olhem, verbalizar é bem difícil. Falei o que tinha acontecido e a
atendente, uma mulher, me disse com cara de indiferente: “Ahm, mas foi só isso?
Ele só te beijou e passou a mão na sua bunda? Você acha que precisa mesmo fazer
o B.O.?”.
Como
assim “só isso”, cara pálida? Quer dizer que, para sua denúncia ser legítima,
você precisa chegar lá espancada, estuprada, escalpelada? Que tipo de Delegacia
da Mulher é essa? Esses casos mais graves só acontecem porque somos coniventes
com as pequenas violências.
Fiz
questão de registrar o B.O. e o sujeito foi condenado a pagar umas cestas
básicas. Anos depois, ele seria o homenageado na minha formatura. Fui contra e
mandei um e-mail para a comissão. Claro que esse e-mail vazou. Já que o caso tinha
vindo a público, aproveitei e fiz uma breve apuração. Acabei descobrindo que a
história tinha se repetido com várias outras meninas na faculdade. Uma delas, a
mais recente, foi fazer um B.O. também para que ele não fosse mais primário.
Fiz questão de ir junto com ela.
Ele
foi afastado da faculdade, mas continua trabalhando na área. Hoje é
cinegrafista de uma emissora de TV e vira e mexe eu tenho a infelicidade de encontrá-lo
em alguma pauta por aí. Nessa hora, tenho vontade de partir pra cima. De gritar
pra todo mundo que aquele cara é um filha da puta. Minha pressão cai, eu fico
toda esquisita. Mas vamos que vamos. Aí é respirar fundo, pensar que eu fiz a
minha parte e tocar o barco.
Outro
dia, um colega tocou nesse assunto, sem saber que uma das meninas agarradas
tinha sido eu. Fiquei quieta só para ver que rumo a conversa iria tomar. Ele,
que é uma pessoa super querida, disse que tinha ouvido falar de uma menina que
foi agarrada durante uma viagem, mas que “parece que a menina tinha provocado”.
Depois
que eu falei que uma das meninas tinha sido eu, ele ficou mega sem graça e
tentou emendar, dizendo que “não era meu caso”, mas as meninas da faculdade iam
quase peladas, ficavam dando em cima dos professores. A emenda saiu pior.
Eu
disse a ele que achava que a gente não tinha estudado na mesma faculdade,
porque eu não me lembro de meninas indo “quase peladas” para a aula. E, mesmo que
elas fossem, isso jamais daria o direito de alguém invadir o espaço delas. Acredito
que pensamentos como esse, aparentemente inocentes, dificultam muito o avanço
contra a violência de gênero.
Bom, eu pontuei o que eu penso de forma bem
enfática e acho que consegui fazê-lo parar e pensar no quanto ele estava
reproduzindo um discurso machista e perigoso. Espero ter conseguido, ao menos!
Nesse
dia, voltei pra casa pensando que eu preciso fazer alguma coisa para direcionar
essa raiva toda para onde ela merece. Há muita luta ainda para que a violência
de gênero possa acabar. E eu vou estar sempre nessa batalha, todos os dias da
minha vida. Que eu possa usar minhas ferramentas de jornalista, documentarista,
enfim, para denunciar sempre esse tipo de coisa.