terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Por dentro de um funeral nas Filipinas

Talvez soe macabro, mas a experiência de um funeral em terra estrangeira pode nos dizer muito sobre a cultura local. Uma pessoa bastante querida por mim aqui em Manila perdeu o pai estes dias e fui convidada a participar dos rituais de despedida junto com a família e amigos. Tristeza à parte, procurei observar como os filipinos lidam com a morte. Acho interessante pensar como o luto se constrói em diferentes culturas. O choro é autorizado? A passagem é vista com mais pesar ou mais leveza? Com essas perguntas em mente, fui prestar minhas condolências numa manhã ensolarada de sábado.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de o enterro só acontecer uma semana depois do falecimento. Em vez da missa de sétimo dia, como seria no Brasil, eles fizeram uma missa de corpo presente seguida de um cortejo até o cemitério. É que a maioria das famílias filipinas tem algum membro morando fora do país, em busca de melhores oportunidades. Por isso o costume de embalsamar o corpo de quem falece e velar em casa durante o período necessário até todos os parentes chegarem. Pode ser uma semana, pode ser um mês. Só depois acontece a missa e o enterro.
A missa se parece muito com uma missa de sétimo dia, com a diferença de que o caixão fica aberto no altar, com um vidro cobrindo o corpo. Em cima deste vidro, fica um porta-retrato com uma imagem da pessoa falecida. No fim da missa, a família e amigos são chamados para o altar e fazem uma fila. Um vidrinho de água benta é passado de mão em mão e cada um joga um pouco sobre o caixão.
Nos funerais tradicionais, como foi este que acompanhei, há um cortejo que sai da igreja e segue até o cemitério, guiado pelos musikeros, uma espécie de banda militar. Ao som dos instrumentos de sopro, seguimos pelas ruas estreitas de Hulo, em Mandaluyong, um bairro humilde formado em sua maioria por casas e sari-saris (as típicas "vendinhas" filipinas).


Crianças observam a passagem do cortejo ao lado de uma típica sari-sari
Moradores, incluindo muitas crianças, se aglomeravam na calçada para ver a banda passar. O que me chamou a atenção foi o fato de muita gente jogar moedas na direção do cortejo. Perguntei a minha amiga o significado deste gesto e ela me disse que era uma maneira de demonstrar respeito. A família não pode pegar as moedas jogadas. De dentro da multidão, observei que não havia aquele clima pesaroso que costuma marcar os funerais no Brasil. O grupo ia conversando e tirando fotos pelo caminho. Ninguém chorava de soluçar. Era como se eles já tivessem tido tempo de elaborar um pouco mais o luto durante o período em que puderam velar seu ente querido em casa.


Os musikeros costumam estar presentes nos funerais mais tradicionais
Chegamos ao cemitério debaixo de um sol de rachar. O caixão foi retirado do carro funerário e, então, aberto novamente. Familiares aglomeraram-se ao redor e calmamente começaram a retirar as fitinhas roxas que estavam presas com alfinetes no forro do caixão. Cada uma trazia o nome de um familiar. As fitinhas foram colocadas dentro de um saco plástico, que foi enterrado junto, seguindo a tradição. Eles também colocam dinheiro junto, o que é uma maneira de demonstrar respeito.
Após a organização do saquinho com as coisas que também seriam enterradas, finalmente tiraram o vidro que cobria o corpo. Um gesto firme e certeiro. De forma súbita, todos que estavam em volta aparentemente tranquilos, inclusive tirando fotos e filmando, começaram a chorar convulsivamente. Algumas pessoas passaram mal e precisaram ser amparadas.


Carro fúnebre acompanhado pela banda é quem puxa o cortejo
Foi neste momento que compreendi: a dor estava ali o tempo todo, forte. O momento em que o vidro foi retirado de certa forma autorizou a catarse. É como se a última proteção tivesse ido embora; a última coisa que o mantinha ali, aos olhos de todos, ainda presente. Agora era preciso encarar. O caixão seria fechado para sempre. Dar-se conta do "para sempre" deve ter sido, ali, a raiz daquele choro coletivo.
Fiquei um tempo sentada ao lado da minha amiga, amparando-a. Não havia muito o que dizer. Alguns minutos depois, fomos ao encontro do grupo, que participava do último ritual de despedida. O caixão já havia sido colocado numa espécie de gaveta vertical e cada um jogava uma flor lá dentro, da mesma forma como acontece no Brasil. Ela me confiou uma flor e eu joguei em memória do pai dela, com todo meu carinho e respeito.
Voltei para casa profundamente tocada pela experiência. Pensando que, sim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem. Eu, que tive meu bebê aqui nas Filipinas e pude presenciar o milagre do nascimento nesta terra, pude ver de perto como é encarada a morte. Foi forte. Mas o mais forte foi, diante de todos os simbolismos presentes, ter a chance de ver um pouco do país ser revelado para mim. Sinto-me finalmente mais conectada com a cultura local. Compartilhar a dor, neste caso, me foi uma ponte. É sempre pelo afeto que vamos.

A arte de ressignificar o Natal num país diferente

Como diria Simone, a cantora por muitos anos onipresente nos lares brasileiros durante o mês de dezembro: então é Natal. Pois é. Aqui nas Filipinas, no caso, é Natal desde setembro. Sim! Não tem CD da Simone, mas tem canções natalinas tocando alucinadamente em todas as lojas e shoppings desde o primeiro mês com a terminação “- bro”. Setembro, outubro, novembro e dezembro. Quatro meses de intenso espírito natalino. Quatro não, cinco, porque a decoração vai até janeiro. Quem não gostar de Natal terá muitos meses de “sofrência”. Como eu gosto, confesso que me divirto com a empolgação filipina com a data.

Este será o segundo Natal que passo aqui. Agora já sei como a banda toca e, por isso, estou mais tranquila. No ano passado a experiência foi meio tensa. Isso porque eu, que estava aqui há apenas dois meses, queria porque queria reproduzir o meu Natal do Brasil em Manila. Eu sonhava com uma ceia como a que eu costumava ter em casa com a minha família. Queria a rabanada. O chester. As castanhas. Hoje, com o distanciamento temporal, eu percebo que eu queria mesmo era o conforto do que me era conhecido ao menos na ceia de Natal. Eram tempos de muitas transformações e fragilidade: gravidez, mudança, saudade. Que ao menos meu chesterzinho, minhas nozes e minhas cerejas estivessem ali!

Saí em busca dos ingredientes para a ceia. Encontrar um peru de Natal foi uma missão impossível. Deve até ter por aqui, mas eu, que estava em Manila há pouquíssimo tempo, ainda não tinha nenhuma dica quente para salvar a pátria. Lembrei-me do chester.  Também não achei em nenhum supermercado. Só encontramos uns presuntinhos caramelizados estranhos. Resignados, fomos de presunto mesmo, com aquela mentalidade “é o que tem pra hoje”.

Nossa primeira ceia de Natal nas Filipinas: resistência à cultura local.


As castanhas aqui estão pela hora da morte! Compramos um pouquinho, só pelo conforto espiritual mesmo. Nozes, amêndoas e pistache. Ah, sim, há algo que eu preciso dizer. Esqueçam aquelas prateleiras lotadas de castanhas que vemos nos supermercados brasileiros. Por aqui encontramos apenas castanhas enlatadas, tipo petisco de festa. Horríveis, mas estava valendo. Garimpamos também umas cerejas. Preparamos arroz com amêndoas, cuscuz marroquino e salada. Para a nossa primeira ceia longe de casa, estava ótimo! Recebemos uma amiga filipina e falamos com a nossa família pelo Skype.

Uma coisa que me ajudou muito a sair do sentimento "no Brasil é tudo melhor" e a me conectar com a cultura local foi a visita que fizemos a uma instituição de caridade em Antipolo, que fica numa província bem próxima. Fomos com dois amigos brasileiros que já moravam aqui há mais tempo e conheciam o padre responsável pelos projetos sociais por lá. Esses amigos, aliás, nos inspiraram demais na abertura afetiva para as Filipinas. Participamos de uma festa de Natal com as crianças e foi uma injeção de ânimo. Saímos de lá revigorados e felizes. Vi o quanto as minhas castanhas eram insignificantes. Danyella, você está em outro país! Acorda, criatura!


Crianças na celebração de Natal em Antipolo


Neste ano, vejo que já estou bem mais aberta à cultura filipina. É bem provável que a gente asse um lechon, que é o prato típico daqui servido nas ceias natalinas. Agora que tenho um grupo de brasileiras incríveis para chamar de amigas, vou propor um monito monita, como é chamado o amigo oculto por estas bandas. Confesso que estou vendo beleza na decoração antecipada e já consigo identificar o que é característico do país, como as belas estrelas penduradas nas fachadas dos prédios, conhecidas como parol.

Nossa árvore com o simpático Papai Noel Filipino, de roupa típica e parol na mão


No parque aqui perto de casa, certamente iremos curtir o festival de luzes organizado todo ano e que atrai centenas de visitantes. Acho bonito. Em uma cidade em que a vida parece girar em torno de shoppings, principalmente no Natal, os filipinos saem de casa simplesmente para contemplar. E, claro, postar nas redes sociais! Afinal, estamos na Ásia. Entre os milhares de paus de selfie, vai ser divertido ressignificar o Natal, sobretudo com a presença do nosso filhote fora da barriga. A todos vocês, meu desejo é um fim de ano com a alma mais leve e aberta para o novo, como a minha neste segundo Natal nas Filipinas.

Festival de Luzes no registrado pelos filipinos, que adoram tirar fotos para redes sociais
Maligayang Pasko! Feliz Natal!

*Texto publicado originalmente no site Brasileiras pelo Mundo em dezembro de 2015.

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