sábado, 21 de março de 2015

7 de março de 2015 - o dia em que nascemos

Meu filho Filipe nasceu às 8h52 do dia 7 de março de 2015, em Manila, nas Filipinas, após 9 horas de trabalho de parto. Este é quase um lide jornalístico. O quê. Quando. Como. Onde. É que tento me organizar há exatas duas semanas para escrever sobre a experiência do parto e nenhuma palavra me parece exata. Nenhuma linguagem parece dar conta desta experiência que só consigo descrever como espiritual. Ou transcendental. Ou metafísica. Escrevo como quem tateia e percebo que "ou" não se encaixa nesta linguagem. Cabe, sim, dizer "e". Porque o parto é soma, é tudo ao mesmo tempo, são várias nascituras. A do bebê, a da mãe, a do pai, a de uma família.

Lipe tinha algumas datas estimadas para nascer. Pelos cálculos do Brasil, seria dia 5. Pelos cálculos aqui, seria entre dia 9 e dia 11. No dia 6 pela manhã, fui a uma consulta de rotina para monitorar como ele estava na barriga. A médica disse que ele ainda estava um pouco alto e que ainda havia muito líquido. Ou seja: ele aparentemente não tinha pressa para sair de lá. Marcamos a próxima consulta para o dia 11 e ela disse que poderíamos esperar até a 41ª semana sem problemas.

Saí um pouco frustrada e ansiosa porque, afinal, a próxima consulta era depois da última data prevista para o parto. Meu filho ainda demoraria para chegar. Esses últimos dias pareciam passar de forma mais vagarosa que a gravidez inteira.

Fui para casa e, durante a tarde, saí para comprar algumas coisas que ainda faltavam para o enxoval. O que me afligia era não achar uma loja de móveis legais por aqui para encomendar um nicho retangular para o quartinho dele, onde pudéssemos colocar os brinquedos. Coisa simples, que em Brasília eu conseguiria resolver num pulo, aqui se tornava um desafio - não ter referência de lojas, de marceneiros e também não ter carro para sair pesquisando por aí. Eu tinha que resolver tudo previamente pela internet e só sair de casa quando a escolha já fosse certeira. Isso me angustiava um pouco - "isso", na verdade", era apenas uma roupagem para a sensação de estar longe de tudo que me é confortável e seguro, percebo.

À noite saí para jantar com João. Voltamos para casa, fomos deitar e eu comecei a pensar na vida. Me lembrei do livro A maternidade e o encontro com a própria sombra, que me acompanhou durante a gravidez. Pensei em como a autora defende que nos comuniquemos de forma clara com o bebê sobre o que estamos sentindo.

O que eu sentia: ansiedade por ele não chegar logo nas datas previstas. Aí comecei a pensar na mensagem que eu poderia estar passando para o meu filho: a de que eu não estava pronta para a chegada dele, por estar tão focada nessas coisas exteriores que eu supostamente ainda precisava resolver (como a tal estante).

Parei para pensar, listei mentalmente todas as pendências e vi que nenhuma delas era essencial. Respirei fundo e falei isso para ele. Falei: "Lipe, a hora que você quiser vir, pode vir, porque sua mãe e seu pai estão prontos para te receber com todo o amor do mundo. Não tem nada faltando para você. Você tem tudo o que precisa. Sobretudo amor. Isso nunca vai te faltar!". Conversei com ele e fui adormecendo.

Cerca de meia hora depois, senti uma espécie de cólica bem chatinha. Nem desconfiei que pudesse ser contração. Na minha cabeça, contração era uma coisa (que eu ainda não sabia o que era, mas que certamente iria descobrir quanto sentisse) e cólica tipo de menstruação era outra. Fiquei quieta tentando dormir e fazer a dor passar. Foi piorando. Resolvi ir ao banheiro e vi que estava com um sangramento. Acordei o João e ligamos para a minha obstetra. Isso era cerca de 0h30. Ela atendeu e disse que podia não ser nada de grave, já que havíamos nos visto pela manhã e estava tudo bem, com nenhum sinal de que o bebê iria nascer. Ela me aconselhou a tentar ver se passava e esperar até de manhã cedo para ir até o consultório dela. Ou então ir até a emergência do hospital se eu quisesse ficar mais tranquila.

João optou por irmos de manhã - afinal, ele estava dormindo; a dor não estava assim de outro planeta; a própria médica havia sugerido isso. Okêi. Tentei deitar e voltar a dormir. A dor foi piorando. Eu respirava fundo, me contorcia, mas pensava: é normal, não há nada de errado, é só uma cólica. Vai passar. Não, não passava. Só piorava. A cada pontada eu me sentia sem ar. Quase não conseguia me mover. Aí passava, ficava cerca de 1 ou 2 minutos em trégua, e depois vinha com tudo. Tentei andar pelo quarto, tentei sentar na cadeira, tentei mil coisas.Até então eu estava sofrendo sozinha, pois tinha medo de incomodar todo mundo na casa e não ser nada de grave. Mas o negócio estava tão brabo que  resolvi acordar o João e dizer que estava doendo MUITO.

Ele, ainda meio zonzo, falou um "vamos pro hospital agora". Lá fomos nós. Acordei minha mãe, disse a ela que "ia ali rapidinho na emergência ver o que era, mas que não devia ser nada" e que, qualquer coisa, ligava pra ela. Pegamos um taxi no meio da madrugada rumo ao Makati Med.

Chegando lá, não lembro mais de muita coisa. Sei que me colocaram numa cadeira de rodas, seguimos para o delivery room, as cólicas aumentavam de intensidade, me mandaram tirar meu colar da sorte, me levaram para uma sala de exames e tcharã: eu já estava com 3 cm de dilatação e as tais cólicas eram, sim, as famosas contrações. Em outras palavras: eu havia entrado em trabalho de parto.

João ficou preenchendo formulários enquanto as enfermeiras monitoravam as contrações e a dilatação. De repente, minha percepção espaço-temporal ficou totalmente alterada. Não sei mais em que momento me levaram para a sala de parto. Sei que me sentaram numa maca e disseram que o anestesista já havia chegado e que eu iria tomar a peridural. Neste momento, as contrações estavam  muito fortes e eu achava que não ia aguentar. Eu me sentia uma figura barroca, toda contorcida. Eis que chega o anestesista e, sem dizer uma palavra, começou a preparar umas injeçõezinhas para colocar no meu braço. Eu: "peraí, o que é isso que vão me dar? Eu quero saber!" e ele me deixou no vácuo. Sério. Me ignorou completamente. Mas o negócio doía tanto que eu baixei a guarda. A orientação era que eu não fizesse nenhum movimento brusco durante a anestesia. O que é obviamente muito difícil, porque, diante de uma contração, a natureza te leva a se contorcer para segurar a dor. Acho que este foi o momento mais tenso para mim. Administrar a dor e ter o sangue frio para não me mexer nenhum milímetro.

Depois que a anestesia começa a fazer efeito, é tudo lindo. Comecei a entrar num êxtase metafísico. Senti a presença das minhas avós já desencarnadas ao meu lado. Me senti conectada com todas as mulheres do mundo que já pariram antes de mim. Senti que a Moema e a Cristina estavam ao meu lado segurando a minha mão - essas duas com quem divido os caminhos do humano e do profundo. Senti muitas coisas. Mas nada cabe em palavras. Nada que eu escrever aqui vai dar conta da transformação profunda que se passou comigo naquelas horas enquanto a dilatação aumentava.

Quando a dilatação passou de 8, me lembro da minha obstetra dizendo que estava chegando a hora do "push", ou expulsivo, como dizem no Brasil. Ela e a equipe de auxiliares me ensinaram como fazer a força para empurrar o bebê, seguindo a contagem que elas fariam. Praticamos algumas vezes. De repente, era para valer. Enquanto elas contavam até dez, eu fazia força para empurrar meu filho. Uma vez. Duas. Várias vezes. Nas últimas, as enfermeiras fizeram uma pressão na minha barriga. Mais uma contagem. Ela tirou o Lipe e começaram a fazer massagem nele, a aspirar o nariz, até que ele chorou. Esse hiato deve ter durado coisa de um minuto. Mas, para mim, pareceu uma eternidade. Eu não entendia o que estava acontecendo com meu filho. Se ele estava bem. Se não estava. Eu só via que ele estava roxo e em silêncio, sendo massageado por ao menos 5 pessoas. Na minha cabeça, passou a ideia de que ele estava morrendo.

Perguntei, com a voz em fiapo: " is he ok?"

A médica disse que sim.

Ele não estava morrendo. Ele estava nascendo. E nascer tem um tanto de morte, como morrer é também nascer. Pensei na música do Arnaldo Antunes que nos acompanhou na gravidez e falei pra ele, em silêncio: "mas tinha que respirar, Lipe! Todo dia!".

Ele chorou e veio para o meu colo. No vídeo que minha mãe fez, escuto minha voz dizendo: "Você é a cara do seu pai!" e "Deus te abençoe, meu filho!". João me fazia carinho o tempo todo. Não lembro de ouvir a voz dele. Mas me lembro do quanto aquele silêncio tinha força. Vendo o vídeo, percebo que ele estava paralisado, quase que sem reação. Só ele pode dizer o que se passou pela cabeça dele durante o nascimento do Filipe. Mas tenho certeza de que foi algo forte e igualmente transformador. Um pai também nascia, ali.

Dar à luz meu filho foi uma experiência tão forte que eu me sentia, de fato, um corpo só junto com ele. Sentia as sensações dele.

A médica me perguntou se eu queria que ele fosse para a enfermaria enquanto eu iria para o quarto descansar. De pronto respondi que não, que eu queria meu bebê junto comigo o tempo todo, mesmo cansada. Ficamos abraçadinhos até que vieram nos levar para o quarto. Acho que tentei amamentar. Exaustos, dormimos. Não me lembro mais o que se passou até o dia seguinte. Só sei que nasci junto com ele no dia 7 de março de 2015. Meu pequeno valente, que já desbrava a alteridade do mundo. Meu anjinho, que me mostrou a força da nossa comunicação ao iniciar o trabalho de parto horas depois de eu dizer a ele: estou pronta.

Estamos prontos, Lipe, para aprendermos juntos a cada dia.

Respiremos!

Amo você, infinito e além! Bem-vindo a este planeta que tanto precisa de doçura.

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