Que signo é esse, arrancar todos os cílios e a sobrancelha quando criança, por volta dos 11 anos, até os 13? Que linguagem meu corpo queria criar, que palavras não ditas, a se reinventar como outro código? Minha agonia de olho. Que essa semana se mostrou tão diante de mim, numa crise de pânico durante um exame de vista. Que coisa ridícula, afinal. Uma quase balzaquiana que não consegue colocar lentes de contato nem deixar a médica se aproximar dos meus olhos para aplicar um necessário laser de argônio? O que guardam os meus olhos? O que eles teriam visto, lá atrás, que eu preferiria não ter visto? Que verdade, diante de mim?
Lembro não precisar de óculos. E, justamente nessa fase de arrancar os cílios, cismei que achava bonito usar óculos e pedi um sem grau à minha mãe. Ela me deu. E eu ia feliz para a escola com minha armação escolhida com amor, sentava-me na primeira fileira e dizia que era para enxergar melhor, porque eu agora precisava de óculos. Se os esquecia em casa, franzia a testa e apertava os olhos, para simular uma falta. Era preciso representar, afinal. Ser convincente da minha miopia. Dois anos depois, comecei a ter que usar óculos de verdade, e eles me acompanham até hoje. Da armação com lente de vidro até aqui, chegamos juntos aos três graus e mais alguns tantos de astigmatismo.
Por que será que desejei usar óculos nessa fase? Penso que para proteger os olhos. Acho que eu queria proteger meus olhos de mim mesma. Hoje, prestes a fazer um cirurgia para corrigir a miopia e deixar de usar óculos, pergunto-me se estou pronta para deixar os olhos verem o mundo sem proteção. Para entrar em contato novamente com essas questões, esse passado de ausência e segredos. Dizem que os olhos são a janela da alma. Se eu machuquei meus olhos um dia, se gritava de desespero a qualquer cisco que arranhava minha visão, talvez fosse porque minha alma estava machucada e eu precisava aprender alguma forma de gritar isso, nem que fosse no corpo.
Cada cílio que eu arrancava era cercado de um ritual. Nem sei dizer como começou, nem exatamente quando. Me lembro de me trancar no quarto e escolher, diante do espelho, qual eu iria arrancar. Havia até uma classificação que eu fazia, para mim mesma: os maiores, os mais escuros, os de raiz branquinha. Depois de arrancados, alguns iam para a minha caixinha de música, pois mereciam ser guardados. Outros jaziam mesmo por ali e eram esquecidos. No começo, não se notava a falta de alguns cílios. Quando o vício ficou forte, começaram a aparecer falhas bem grandes e logo eu estava sem nenhum cílio, e logo também sem sobrancelhas. Para a minha mãe, por vergonha, eu dizia que eles estavam caindo, que devia ser alguma alergia. Ela me levou aos melhores médicos da cidade - oftamologistas, dermatologistas e por aí vai. A todos eu repetia a mesma ladainha: estavam caindo, caiam quando eu coçava os olhos...
O que sei é que arrancar os cílios me dava um alívio enorme e inexplicável para alguma coisa também inexplicável e que, até hoje, eu não sei bem o que é. Entender isso talvez seja entender o que sou. Há palpites: ausência do pai, ansiedade descontrolada, agressividade que eu não colocava para fora e voltava para mim etc. Todas essas hipóteses vêm do mesmo lugar e levam para o mesmo lugar, é o que sinto. E tentar compreender que lugar é esse é o que tenho feito. Porque é fácil buscar um nome - tricotilomania - e rotular. Basta pesquisar no Google e logo aparecerão milhares de casos. Sim, quando a gente acha que é maluco, descobre que nunca estamos sozinhos em nenhum barco. Já dizia o pai de uma grande amiga minha durante um porre ou um momento melancólico ou ambos: o ser humano é um queijo suíço, cheio de buracos.
É fácil buscar um nome e rotular, mas não nos ajuda muito. Ajuda mais, penso eu, atentar para os signos, as imagens. Não me lembro qual era o filósofo que formulava questões mais ou menos asim: "que é isso, a filosofia?". Talvez Heidegger. Talvez. Sei que prefiro seguir por aí, por estes caminhos de florestas, e questionar: que é isso, arrancar os cílios? Ou, mais além: que é isto, o olhar?
O olhar, observadora que sou, é minha maneira mais sublime de conhecer o mundo.
Mais, dessa resposta, vou tecendo enquanto caminho.
domingo, 19 de agosto de 2012
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